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Um presidente que sabe ser reles

Bolsonaro usou o assassinato de um opositor à ditadura para tentar amesquinhar o filho, presidente da Ordem dos Advogados, e respondeu às críticas com novas declarações protegendo a história da ditadura

Ao comentar o encerramento da investigação sobre o atentado que teria sofrido há meses, Bolsonaro insultou o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz, por não ter autorizado a escuta do telefone do advogado do homem preso pela tentativa de crime (e que foi entretanto considerado judicialmente inimputável). Nisso só temos o Bolsonaro tradicional. Mas acrescentou uma frase que incen­diou o Brasil: “Um dia, se o presidente da Ordem quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto. Ele não vai querer ouvir a verdade.”

O pai de Santa Cruz militava contra a ditadura, em 1974 foi capturado e logo morto. O assassínio está documentado, e há uma semana o Governo atual confirmou, em atestado de óbito, que se tratou de “morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro”. Se podemos perguntar porque é que o Presidente evoca este assassínio a pretexto de uma questão judicial 45 anos mais tarde, registemos a crueldade de ameaçar um advogado com uma falsificação sobre a morte do seu pai. Por isso, alguns dos aliados de Bolsonaro reagiram com surpresa e mágoa. Dória, governador de São Paulo e um dos primeiros dirigentes do PSDB a apoiar o atual Presidente, veio dizer que “não posso silenciar diante desse facto. Eu sou filho de um deputado federal cassado pelo golpe de 1964 e vivi o exílio com meu pai”. Outros também protestaram.

Bolsonaro reagiu anulando um encontro com um ministro francês e organizando uma transmissão em direto nas redes sociais do seu corte de cabelo para fazer novas declarações. Segundo a sua versão, “não foram os militares que mataram ele”, foi a sua própria organização. Como é que sabe? Ora, conversava com outros militares. E “estávamos em guerra”, diz o Presidente, voltando a lembrar o seu herói, o coronel Ustra, o homem que torturou aquela jovem de 22 anos que se chama Dilma Rousseff. Só que, neste caso, a sua historieta é verificável: o relatório RPB 655, do Comando Costeiro da Aeronáutica, comprova que Fernando Santa Cruz foi preso pelo regime em 22 de fevereiro de 1974 e executado.

Aqui temos como se pode chegar tão baixo: um ex-oficial durante o regime militar sabe das condições em que foi assassinado um opositor, usa esse episódio dezenas de anos mais tarde para amesquinhar o filho, presidente da Ordem dos Advogados, e responde às críticas com novas declarações protegendo a história da ditadura. Este é o homem que diz ter sido convidado a fazer uma visita oficial a Portugal em 2019.

Texto publicado no Expresso em 03 de agosto de 2019.

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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