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300 dias à espera da cannabis

Não existem hoje dúvidas na comunidade científica que existem várias patologias e sintomas para os quais os produtos da cannabis são eficazes.

Passaram mais de 300 dias desde que a Assembleia da República aprovou a regulamentação da utilização da cannabis medicinal. Quantos doentes têm hoje acesso a estes tratamentos? Nenhum. Na verdade, muitos destes doentes continuam a tomar a cannabis de que necessitam: compram online a preços elevados. No entanto, arriscam-se a ver o produto confiscado na Alfândega, mesmo quando têm uma receita ou um relatório médico.

Nem o Infarmed, nem a Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) se entendem sobre a natureza do produto — empurram a responsabilidade de um lado para o outro até que o produto se perca em circulação e o dinheiro dos doentes desapareça. Curiosamente um destes produtos de cannabis — o óleo de CBD, já esteve comercializado em Portugal mas desapareceu após a aprovação da lei.

Não existem hoje dúvidas na comunidade científica que existem várias patologias e sintomas para os quais os produtos da cannabis são eficazes. Mas há um grupo especial onde o óleo de CBD é particularmente benéfico: crianças com epilepsias refratárias. São crianças de várias idades, algumas com apenas alguns meses, que tinham várias crises epilépticas por dia e que, em alguns casos, ficaram sem crises e aceleraram o seu desenvolvimento psicomotor. Estas crianças não podem esperar 300 dias para que a lei se efetive. Durante este tempo, muitos passos no seu desenvolvimento podem perder-se. É por isso que os seus pais arriscam importar uma substância que nenhuma entidade reguladora sabe muito bem se é legal ou não.

O recém-criado Observatório Português de Canábis Medicinal (OPCM) tem questionado o Infarmed sobre a demora na disponibilização do óleo de CBD, ao qual este tem respondido que não recebeu ainda pedidos de introdução da substância no mercado por parte da indústria. Por seu lado os produtores queixam-se da excessiva carga burocrática exigida pelo Infarmed para autorizar a comercialização.

Tudo se torna ainda mais incompreensível quando, nestes 300 dias, uma empresa canadiana inaugura uma das maiores fábricas de produção de cannabis em solo Português. Inauguração essa que contou com a presença de altos representantes do Infarmed no momento de cortar a fita. Essa mesma empresa recebeu recentemente um certificado de boas práticas de produção da Agência Europeia de Medicamentos, que a autoriza a fornecer canábis produzida em Portugal... a outros países Europeus!

Em resumo, o óleo de CBD é legal em Portugal? É! Mas não existe! A alfândega apreende as encomendas do exterior; a DGAV empurra a responsabilidade para o Infarmed que empurra para a DGAV; o Infarmed ainda não recebeu pedidos de comercialização por parte da indústria que se queixa do Infarmed por criar barreiras burocráticas; a indústria produz canábis em Portugal para vender no estrangeiro já que não pode vender em Portugal!

Tudo isto lhe faz lembrar um “processo” Kafkiano da vida real? É porque é mesmo... enquanto isso há várias crianças em Portugal que estão há 300 dias pendentes de um “alguém” que lhes desbloqueie a vida.

Artigo publicado no “Público” a 30 de maio de 2019

Sobre o/a autor(a)

Médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
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