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Resgatar o SNS (I)

Uma nova lei de bases da saúde, aprovada à esquerda, foi um esforço titânico de muitas e de muitos – ela era tão urgente quão má era a lei prévia que atribuía ao Estado responsabilidades e obrigações no desenvolvimento da medicina privada.

Uma nova lei fundamental para o SNS parece pouco mas é muito: abre-se um caminho alternativo que permite recolocar o SNS no centro das prioridades, é preciso percorrê-lo! Foram décadas de estropio: profissionais em fuga para o privado, com as suas carreiras destruídas; proliferação de empresas de trabalho temporário com a inundação das urgências hospitalares por profissionais “à hora”; entrega de serviços fundamentais ao setor privado, exames complementares de diagnóstico, cirurgias, com a criação de rendas fixas para os grandes operadores; desgaste sem substituição de equipamentos; exploração até à exaustação de edifícios velhos e desadequados à prestação de cuidados. A lei de bases resolve tudo isto? Não, não resolve. E é por essa razão que se o caminho por ela agora aberto não for trilhado, todo este esforço à esquerda se perderá no tempo.

A lei de bases resolve tudo isto? Não, não resolve. E é por essa razão que se o caminho por ela agora aberto não for trilhado, todo este esforço à esquerda se perderá no tempo

O SNS é hoje refém dos prestadores privados: estes enriquecem à custa da claudicação do SNS e parasitam uma parte significativa dos seus recursos. De cada 10€ do orçamento da saúde, 4€ acabam nas faturas dos privados. Só em convenções diretas, por ano, quase 400M€ são para pagar serviços que foram perdidos pelo SNS. Na legislatura que agora acaba, 2000M€ foram para pagar as PPP.

O SNS precisa de um resgate. Das garras predadoras dos prestadores privados e dos grilhões asfixiantes de um orçamento fraco – 5% do PIB contra os 6,6% da média dos países da OCDE. E esse resgate é um programa político ousado, descomprometido com os interesses privados, que prioriza o desenvolvimento e modernização de um SNS autónomo, auto-suficiente e sustentável. O tempo desse resgate é agora: a cada dia que passa, a dependência dos servidores externos aumenta, o corpo profissional fragmenta-se e a infraestrutura colapsa.

Este programa que é um resgate só serve se for feito de ideias claras: dedicação plena dos seus profissionais, um plano de investimentos a longo prazo, autonomia das unidades de saúde para contratação de novos profissionais e aquisição de equipamentos, generalização e progressão dos vários modelos de USF, modernização do parque tecnológico e uniformização das plataformas de informação, expansão da Rede Nacional de Cuidados Continuados e Integrados, abolição de taxas moderadoras para todos os atos prescritos por profissional de saúde e aumento do orçamento gasto em prevenção e promoção da saúde.

Não existe hoje qualquer justificação aceitável para não promovermos a dedicação plena dos profissionais do SNS

Não existe hoje qualquer justificação aceitável para não promovermos a dedicação plena dos profissionais do SNS. Aliás, essa tem sido a tendência do próprio setor privado. Dedicação plena é uma proposta de seriedade e de eficiência. De seriedade porque só desta forma se anulam os conflitos de interesses e a dependência criada entre o setor público e o setor privado, com a transferência de doentes, de atos médicos e, sobretudo, de tempo e disponibilidade dos profissionais. De eficiência porque profissionais em dedicação plena permitem optimizar a capacidade já instalada, com óbvios ganhos de produtividade e redução de desperdício, o que significa poupança.

Muitos serviços sobrevivem com médicos especialistas contratados a tempo parcial ou com restrições de horário e disponibilidade pela sua situação de pluriemprego, acarretando dificuldades no preenchimento de escalas de urgência ou no número de consultas efetuadas. Um corpo mais pequeno de médicos em dedicação plena, mesmo com salários maiores, permitiria poupança e ultrapassar dificuldades sazonais. Ao mesmo tempo o SNS tem hoje muitos equipamentos que não estão completamente rentabilizados pela falta de profissionais: blocos operatórios que fecham ao início da tarde e ao fim de semana, máquinas de TAC ou ressonância magnética que só trabalham 8 horas por dia. A dedicação plena é um instrumento que permite reduzir o seu tempo de inutilização, mais uma vez com ganhos de eficiência e poupança.

A dedicação plena não pode ser uma proposta radical e imediata. Alias, não é conhecida nenhuma proposta nesse sentido. E tem que ter por base um alicerce fundamental: a dedicação plena tem que ser premiada! As tabelas salariais dos profissionais têm que ser revistas para incluir a exclusividade, ao mesmo tempo que deve ser definido um estatuto do profissional em exclusividade que lhe facilite o acesso a formação contínua financiada, prioridade no acesso a cargos de direção e lhe atribua responsabilidades na gestão da sua unidade de saúde. Alguns serviços de que o SNS hoje necessita podem funcionar com profissionais em pluriemprego, essas exceções devem ser salvaguardadas.

  1. A generalização da dedicação plena no SNS só será bem sucedida com um plano faseado de médio prazo assente em duas premissas:
  2. Disponibilização imediata da dedicação plena aos profissionais que a desejam, nos locais onde ela é identificada como necessária;

Os novos contratos de profissionais serão feitos em dedicação plena (com as devidas excepcionalidades asseguradas).

Assim será possível ter uma primeira fase de implementação que seja essencialmente voluntária (e de acordo com as necessidades), seguida de uma fase em que as novas contratações serão todas feitas em dedicação plena e uma fase final em que essa contratação se torna generalizada. Durante as várias fases, as passagens à dedicação plena devem resultar sempre de um equilíbrio entre as necessidades dos serviços, avaliadas pela respectiva direção e administração regional de saúde e a disponibilidade existente de profissionais. No final do período de transição, deverão estar identificadas as necessidades reais de profissionais em dedicação plena de cada serviço e cada unidade.

O desenho deste plano deve convocar à participação de todos: profissionais e seus representantes, administrações intermédias e ministério da saúde. Mas não deve esquecer nunca o objetivo primordial: que no século XXI a Medicina faz-se com profissionais dedicados.

Sobre o/a autor(a)

Médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
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