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Uber: retrato-robot da empresa que deu nome à nova forma de precariedade

Dedica-se ao transporte de passageiros, comida e bicicletas. Dá prejuízos mas cresce. A Uber tem dez anos e dezenas de polémicas associadas: fuga ao fisco, assédio laboral e sexual, enganar trabalhadores, espiar fiscais do Estado, contratar serviços aos concorrentes para depois os anular.
Condutor da Uber em protesto em San Diego em 2016.
Condutor da Uber em protesto em San Diego em 2016. Foto de Wayne S. Grazio. Flickr

Diz o mito que Garret Camp queria contratar um condutor na véspera de ano novo e teve de penar e desembolsar 800 dólares. A ideia simples de criar uma plataforma online que ligaria quem precisa de transporte e quem quer vender esse serviço teria nascido dessa dificuldade. Depois foi só avançar. À má fila. Sem notificar as autoridades locais do início da atividade e fintando os regulamentos locais de transportes. E assim começaram a vender transporte, primeiro em carros de luxo, sem ter nenhuma uma frota própria.

Dez anos volvidos do momento fundador, metade dos quais com presença em Portugal, a ideia deu a volta ao mundo. Segundo a marca foram dez biliões de viagens realizadas desde o início. Atualmente são 91 milhões de utilizadores por mês e 3,9 milhões de condutores.

Nos Estados Unidos conta com uma quota de mercado de 69% nos transportes de passageiros e de 25% na entrega de comida ao domicílio. Em Portugal, opera desde 4 de julho de 2014, cobrindo 60% da população do país. Lisboa, Porto, Algarve, Braga, Guimarães e Coimbra, são as regiões nas quais se pode chamar um dos oito mil motoristas que a empresa anuncia ter nestas bandas. E, ao longo destes cinco anos, a empresa anuncia que foram 2,5 milhões os downloads da sua aplicação feitos no nosso país.

A Uber abrandou?

Imagem de marca da nova “economia de partilha”, modelo para muitas outras que lhe seguiram as pisadas, assim apresentada a Uber parece ter tudo para ser um sucesso. Mas está longe de ser líquido que o é.

As reservas brutas, ou seja o montante gasto pelos clientes com a Uber, aumentaram 34% no primeiro trimestre do ano, ao passo que no último trimestre de 2018 o crescimento tinha sido de 37%. Pior, no ano passado a empresa acumulou um prejuízo de 1,6 mil milhões de euros, se descontarmos os ganhos extraordinários alcançados com a venda de operações na Rússia e na Ásia. Em 2017, os prejuízos tinham sido quatro mil milhões de dólares.

A empresa revela outra fragilidade inesperada. Apesar das suas tentativas de expansão e de estar presente em mais de 700 cidades, um quarto do seu negócio concentra-se em cinco cidades: Nova Iorque, Los Angeles, São Francisco, Londres e São Paulo.

A atividade paralela da Uber Eats, a plataforma de entrega de comida estreada em 2014, parece estar a ser melhor sucedida: as suas receitas quase triplicaram no ano passado, para perto de 1,5 mil milhões de dólares. A Uber Eats está presente em cerca de 200 cidades de 20 países e prepara-se presentemente para começar a entregar comida através de drones.

As bicicletas, a terceira roda da empresa, também se aguentam de pé. A Jump, comprada em abril de 2018, disponibiliza bicicletas elétricas e trotinetes nos Estados Unidos, Alemanha, Portugal e Reino Unido. E também cresce. Entrou na Europa por Lisboa e desde fevereiro mais do que duplicou o número de bicicletas disponível na capital portuguesa.

A rede aperta: tribunais e fisco contra Uber

Para além dos números, a Uber enfrenta outros problemas. Longe da imagem de uma empresa de sucesso por força de uma ideia brilhante e do empreendedorismo, há uma face mais sombria da Uber e muitos obstáculos no seu caminho. Que começam logo pelos países ou cidades, como Barcelona, que lhes fecham as portas.

Também o descontentamento dos trabalhadores emerge e os conflitos laborais despontam um pouco por todo o lado em que a plataforma opera. A oito de março aconteceu mesmo a primeira greve e manifestação global contra a Uber.

Os protestos dos trabalhadores têm tomado também a forma de processos judiciais pelo reconhecimento do estatuto de funcionários da empresa. O que ameaça o próprio coração do seu negócio, a chamada uberização do trabalho, que torna cada trabalhador supostamente um “parceiro” autónomo. A imagem de uma empresa em que, para sobreviver, os condutores são obrigados a horários demasiado pesados, não tendo praticamente direitos, penaliza cada vez a Uber.

Por este motivo, em março deste ano, nos EUA, a Uber decidiu fazer um acordo extra-judicial em que pagou cerca de 20 milhões de dólares aos motoristas que processaram a empresa apoiando-se no código laboral californiano. Em outubro de 2016, o Tribunal de Emprego de Londres Central decidiu que os trabalhadores da Uber eram seus assalariados pelo que a empresa lhes devia salário mínimo, férias e outros direitos. A empresa voltou a perder o caso em segunda instância mas promete levar o caso até ao Supremo.

Em Nova Iorque a empresa foi também obrigada a pagar o salário mínimo aos motoristas e aceitou compensá-los por ter ficado provado que estava a pagar-lhes abaixo do que anunciava confundindo deliberadamente rendimento bruto com rendimento líquido.

O Tribunal de Justiça da União Europeia também decidiu, em dezembro de 2017, que a Uber não é uma mera plataforma online mas sim uma empresa de transporte, instando os Estados-membros a regulamentá-la nesta categoria.

E a empresa acordou ainda pagar 20 milhões de dólares ao governo norte-americano para escapar à acusação de que tinha enganado condutores aliciando-os com rendimentos que seriam impossíveis.

Para além dos tribunais também o fisco aperta a rede. Esta terça-feira, a própria empresa confirmou que está a ser alvo de uma investigação nos Estados Unidos e “noutros países” por fuga aos impostos.

Outro revés foi a investigação sobre automóveis não-tripulados. Anunciada como a vaga do futuro, estes foram lançados experimentalmente primeiro em Pittsburgh e depois em São Francisco. Este último caso acabou cancelado em dezembro de 2016 por ordem do Departamento de Veículos Motores da Califórnia. Em março de 2017 um primeiro incidente em que um carro não tripulado capota coloca o programa em causa. Um ano depois, um atropelamento mortal no Arizona compromete ainda mais a aventura na qual a empresa continua a investir centenas de milhões.

O projeto está ameaçado noutra frente: em fevereiro de 2017 a Waymo, empresa do mesmo ramo fundada pela Google, colocou a Uber em tribunal acusando de roubo de tecnologia que tinha desenvolvido.

Guerra comercial e a app contra o Estado

Em janeiro de 2014, uma fuga de informação revelou que a empresa ordenou a empregados seus para marcarem viagens na Gett que depois desmarcariam de forma a desviar clientes. Também a Lyft foi atacada em julho desse ano quando estava a entrar no mercado de Nova Iorque: a Uber utilizou exatamente a mesma estratégia para além de contratar uma equipa para recrutar os condutores daquela empresa.

A Uber também utilizou o seu polémico software Greyball que recolhe dados de utilizadores de forma evitar alguns clientes. A empresa jurou que se trataria de uma forma de proteger os motoristas de clientes violentos mas foi descoberto que também o utilizava para evitar que agentes de autoridade fiscalizassem o seu serviço em zonas em que este é ilegal. Através dos cartões de crédito utilizados, da verificação das redes sociais dos utilizadores ou do uso da aplicação em certos edifícios governamentais a firma identificaria os agentes do governo. Políticos e jornalistas também terão sido rastreados pela aplicação monitoriza os dados de localização dos utilizadores.

Para além disto, a Uber criou um sistema chamado Ripley que tratava de desligar, bloquear, mudar passwords dos computadores dos seus funcionários em caso de alguma rusga policial ou de outra entidade estatal.

O lado tradicional da empresa moderna: exploração, maus-tratos, assédio sexual

São muitos os casos que mancharam a sua imagem. Em fevereiro de 2017, Susan Fowler uma ex-engenheira da empresa denunciou o assédio e perseguição de que foi alvo e a ausência de respostas da administração. A investigação sobre assédio sexual na empresa levou ao despedimento de 20 funcionários. E, em agosto de 2018, a Uber concordou pagar sete milhões de dólares a 480 trabalhadores para resolver casos de discriminação de género, assédio sexual e laboral.

Ficou provado que também o seu co-fundador e ex-presidente executivo, Travis Kalanick, tinha conhecimento. Kalanick acabou por ser afastado no meio dos vários casos que atingiram a empresa. Não ajudou à sua situação o vídeo que se tornou viral em que se comporta de forma agressiva para com um condutor que tinha lamentado os baixos salários.

Por outro lado, num dos seus pontos mais fortes, em Nova Iorque, no início de 2017, a Uber foi contestada quando continuou a operar apesar dos motoristas de táxi terem entrado em greve contra a proibição da entrada nos EUA de cidadãos de sete países de maioria muçulmana. 200 mil utilizadores apagaram então a aplicação.

A Uber, e outras empresas do género, foram também criticadas por, em situações de emergência como aconteceu durante o furacão Sandy em 2012, inflacionarem os preços de acordo com os seus princípios de tarifas dinâmicas. No seguimento disso ter acontecido no ataque na Ponte de Londres em 2017, a empresa anunciou a devolução de tarifas aos afetados.

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Neste dossier:

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