Nas últimas semanas, têm sido votadas, artigo a artigo, a proposta do Governo e as dos partidos à esquerda para a lei do trabalho. Não me pronunciarei, por agora, sobre o modo como a discussão tem decorrido, que já mereceu observações como esta. Nem detalharei neste texto as dezenas de propostas da Esquerda que foram chumbadas nestes últimos dias pelo PS e pela Direita, da redução do horário à reposição dos dias de férias retirados durante o período da troika, desde a inscrição na lei do direito ao subsídio de refeição ao princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador, desde normas de reforço do combate ao assédio no trabalho às que previam acabar com aberrações como as que constam em contratos que definem horário e local de trabalho assim: “das 0h às 24h”, “em todo o território nacional”.
o essencial da legislação laboral da troika e do PSD e CDS manter-se-á totalmente intacto: aquilo que foi apresentado como um “direito laboral de exceção” em 2012, e que mereceu até, em muitos casos, críticas do PS, passará a ser normalizado
Centrar-me-ei, então, na proposta de lei do Governo e em algumas das normas que foram aprovadas nesta semana.
Há cerca de três anos foi constituído um Grupo de Trabalho entre o Governo e o Bloco para fazer um Plano de Combate à precariedade. Ao fim de um ano e meio acordou-se nesse grupo algumas medidas de sentido positivo: i) limitar a duração dos contratos a prazo; ii) limitar os fundamentos desses contratos precários, deixando de bastar ser-se um jovem à procura do primeiro emprego, um desempregado de longa duração ou estar-se em início de atividade para poder ter um contrato a termo mesmo para funções permanentes; iii) instituir um limite de renovações nos contratos temporários (hoje totalmente inexistente); iv) acabar com o banco de horas individual; v) reforçar os meios da Autoridade para as Condições de Trabalho e da lei de reconhecimento dos contratos de trabalho (feita para combater a dissimulação de relações de trabalho subordinado com falsos recibos verdes, estágios ou outras ilegalidades)
Todavia, quando levou a sua proposta para a concertação social, o Governo ofereceu uma série de contrapartidas aos patrões, que mitigaram e nalguns casos esvaziaram mesmo o que tinha sido acordado à esquerda: i) aceitou aumentar para o dobro o período experimental dos jovens à procura do primeiro emprego e dos desempregados de longa duração; ii) aceitou generalizar a todos os setores de atividade os contratos orais de muito curta duração (que são permitidos apenas em atividade agrícola sazonal e em eventos turísticos), aumentando também a sua duração; iii) aceitou criar uma nova figura de banco de horas fora da contratação coletiva; iv) esvaziou completamente a penalização por rotatividade, ao criar uma floresta de exceções e ao tomar como valor de referencia a média por setor.
E o PS?
no jogo de forças interno do Partido Socialista vingou a orientação de quem não queria mexer nas normas negociadas com os patrões, para não pôr em causa o acordo subscrito por António Costa com as confederações patronais e a UGT nem o apoio do PSD e do CDS à proposta do Governo
Chegada a proposta ao Parlamento, a Direita fez eco da posição patronal e aplaudiu o acordo, anunciando que viabilizaria a proposta. Colocou-se contudo a questão de saber o que faria o Partido Socialista. Iria aceitar ratificar a proposta negociada com os patrões, sem lhe mexer em nada? Ou estaria disponível para uma negociação à esquerda, que retirasse da proposta as normas que consagram novas vias de precarização? Durante alguns meses, o Grupo Parlamentar do PS foi atravessado por um debate interno em que se confrontaram posições, o seu líder chegou a declarar que, terminada a fase da “concertação social”, teria de haver uma “concertação parlamentar”. Mas no jogo de forças interno do Partido Socialista vingou a orientação de quem não queria mexer nas normas negociadas com os patrões, para não pôr em causa o acordo subscrito por António Costa com as confederações patronais e a UGT nem o apoio do PSD e do CDS à proposta do Governo. Os deputados do PS, confrontados com uma dramatização do Governo sobre a imutabilidade daquelas normas, viram-se assim confinados a propor uns pequenos arranjos que não pusessem em causa o aplauso dos patrões e o voto favorável da Direita no final do processo.
O caso especial dos contratos orais de muito curta duração
O Código do Trabalho prevê, no seu artigo 142.º, os “Casos especiais de contrato de trabalho de muito curta duração”. O título do artigo é curioso. Este tipo “especial” de contratos não precisa de ser reduzido a escrito e não está coberto pelo Fundo de Compensação do Trabalho e por isso é muito mais suscetível a abusos sobre as condições de trabalho (cujos termos não estão acordados por escrito) e à escassez de proteção social. Foi uma figura criada com o argumento de que uma forma simplificada e mais informal de contrato poderia ser um instrumento de combate à informalidade total em dois setores específicos: a “atividade sazonal agrícola” e a “realização de evento turístico não superior a 15 dias”. Só que a porta que então se abriu com esse argumento, quiseram os patrões agora escancarar.
Foi isso que propôs o Governo. Desde logo, duplicando o seu prazo (de 15 para 35 dias). Mas sobretudo acrescentando à lei um “nomeadamente” que transforma o que era até agora uma restrição a dois setores (agricultura e evento turístico) numa mera exemplificação, alargando por esta via a toda a atividade económica estes contratos rebaixados de segunda categoria. O PS, preso à exigência patronal, propôs transformar o nomeadamente em “sectores correlacionados”, o que, dada a indeterminação do conceito, seria na prática todos os que quisessem considerar-se como tal, tornado assim a norma pior do que já é na lei atual, quer em duração (35 dias), quer no âmbito.
O alargamento destes contratos orais acabou, infelizmente, por ser aprovado pelo PS, PSD e CDS, com o voto contra do Bloco e do PCP.
O período experimental e o fantasma da inconstitucionalidade
Um exemplo também significativo é o do “período experimental”. Esta figura legal corresponde a um tempo inicial em que trabalhador e empregador não se conhecem e em que, estando “à prova”, ao trabalhador não são garantidos alguns dos seus direitos fundamentais, desde logo porque o empregador pode fazer cessar o vínculo sem invocar motivo, sem aviso prévio (como regra geral) e sem compensação ou indemnização. O período experimental é assim a mais precária de todas as relações laborais previstas na lei (muito mais precária que um contrato a prazo). Por isso, a definição da sua duração é uma questão crítica. Ao propor que se duplique de 90 dias para 180 o período experimental de jovens à procura do primeiro emprego e de desempregados de longa duração, o Governo condena estes dois grupos a um estatuto laboral de menoridade de direitos. Por que razão, para funções indiferenciadas, seria preciso estar seis meses à experiência? Nada justifica que, para cargos e funções sem complexidade técnica ou que não envolvam especial confiança, isso seja assim.
A proposta de duplicar o período experimental, aprovada também esta semana por PS, PSD e CDS com os votos contra do Bloco e do PCP, não é totalmente nova. Em 2008, Vieira da Silva chegou a propor alargar para os mesmos 180 dias o período experimental para a generalidade dos trabalhadores. Essa alteração foi declarada inconstitucional. No acórdão 632/2008, o Tribunal Constitucional considerou que a medida violava o preceito da segurança no emprego (art.º 53 da Constituição) e que colidia também com o art.º 18 da Constituição, que define que “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias” (neste caso, não ser despedido sem motivo) para salvaguardar “outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”, coisa que não acontecia.
A proposta feita agora pelo Governo, por mais flores que o PS lhe quisesse pôr em cima, é pois um perigo que restringe direitos através da expansão temporal de uma condição precária e arrisca-se a levar novo chumbo do Tribunal Constitucional
A proposta feita agora pelo Governo, por mais flores que o PS lhe quisesse pôr em cima, é pois um perigo que restringe direitos através da expansão temporal de uma condição precária e arrisca-se a levar novo chumbo do Tribunal Constitucional. Às razões do passado, pode vir a somar-se agora a acusação de se tratar de uma norma discriminatória. É que a diferenciação que atualmente existe no prazo do período experimental é justificada pelas diferentes responsabilidades e complexidade da função atribuída ao trabalhador e não pelo tipo de trabalhador. A acrescentar a isto, a proposta de alteração do PS estabelecia que um “trabalhador à procura do primeiro emprego” só deixaria de o ser depois de dois anos seguidos de contrato (ou seja, podia estar a trabalhar há 4 anos, desde que com interrupções, que continuaria a estar “à procura do primeiro emprego”). No final, também aqui temos um novo quadro de abuso, que talvez venha a ser travado pelo Constitucional.
*
depois de ter um acordo de combate à precariedade que teria o apoio da Esquerda, o Governo e o PS quiseram trazer para a sua proposta de legislação laboral novas vias precarizantes
O resultado final deste processo legislativo arrisca-se a ser duplamente decepcionante. Decepcionante, em primeiro lugar, porque o essencial da legislação laboral da troika e do PSD e CDS manter-se-á totalmente intacto: aquilo que foi apresentado como um “direito laboral de exceção” em 2012, e que mereceu até, em muitos casos, críticas do PS, passará a ser normalizado. O corte brutal nas compensações por despedimento, nos dias de férias, no valor do trabalho suplementar, justificados então pela Direita com a situação excepcional de “crise e austeridade” passará agora, pelas votações convergentes do PS, do PSD e do CDS, a ser um adquirido ao centro. Decepcionante ainda porque, depois de ter um acordo de combate à precariedade que teria o apoio da Esquerda, o Governo e o PS quiseram trazer para a sua proposta de legislação laboral novas vias precarizantes totalmente contraditórias com o que deveria ser o espírito da legislatura, mas que fazem as delícias daqueles que sempre acharam que os salários baixos, o abuso e a ausência de direitos era o modelo ideal para o país.
Artigo publicado no “Expresso” a 28 de junho de 2019