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Crise de humanidade

O nosso problema não é uma crise humanitária, mas sim uma crise de humanidade em várias lideranças mundiais.

“Ele atravessou primeiro com a rapariga pequena e deixou-a no lado americano. Depois voltou atrás, para ir buscar a mulher, mas a menina entrou na água para ir atrás dele. Quando ele foi salvá-la, a corrente levou-os a ambos”. Óscar Ramirez, Tania Ávalos e a sua filha Valéria tinham chegado à cidade de Matamouros, no México, no passado domingo. Ficaram aí a saber que demoraria semanas até iniciar o processo de pedido de asilo nos Estados Unidos da América, cuja decisão seria incerta. A espera significava que a família ficaria confinada a um campo para migrantes, do lado mexicano, expostos à fome e a temperaturas que facilmente sobem acima dos 40 ºC. O desespero impeliu-os para a passagem do rio.

O relato de Julia Le Duc é tão duro como a fotografia que ela tirou e correu o mundo. Óscar e Valéria, juntos dentro da T-shirt preta do pai, com os corpos a flutuar de barriga para baixo na margem do Rio Grande. O pai de 26 anos e a menina com menos de 2 anos morreram ali, afogados, vencidos não pela corrente do rio, mas pela desumanidade que existe na fronteira entre os EUA e o México.

O Alto Comissário da ONU para os Refugiados, Filippo Grandi, afirmou que “a morte de Óscar e de Valeria simboliza o fracasso em resolver a violência e o desespero que empurra as pessoas a iniciarem viagens perigosas à procura de segurança e de dignidade”. Esta família agora destroçada tinha fugido de El Salvador onde estariam condenados a uma pobreza extrema e à epidemia da violência espalhada por gangues armados.

No mesmo dia em que a correnteza lhes levou a vida, ficamos a conhecer uma outra face desta tragédia. Um conjunto de advogados denunciou como são tratadas as crianças nos centros de detenção para imigrantes do lado norte-americano. A política de Donald Trump considera criminoso qualquer imigrante ilegal e não reconhece a outros familiares que não os pais a guarda legal das crianças, mesmo que estejam acompanhadas por outros familiares, incluindo irmãos, avós ou tios. A consequência disso é que as crianças são separadas das famílias e enviadas para os centros de detenção.

As condições em que passam a viver são cruéis: ficam em jaulas sobrelotadas onde comem e dormem; não recebem cuidados médicos, não podem tomar banho ou sequer lavar os dentes, não mudam de roupa durante semanas e têm nos piolhos uma praga generalizada. Esta é a situação relatada nas instalações do centro de detenção para imigrantes de Clint, no Texas, Estados Unidos, onde estavam 300 crianças. Há mais de 2 mil crianças noutros centros similares. Indignidade.

“Como é possível?” - creio ser esta a pergunta feita por muitos de nós quando assistimos a estes relatos ou quando somos confrontados com fotografias como a de Óscar e Valéria. Fizemos essa mesma pergunta quando vimos o menino sírio Alan Kurdi, há três anos, voltado de barriga para baixo, morto na praia, depois da sua família tentar chegar numa embarcação rudimentar à ilha grega de Kos. É isso que nos vem à ideia quando a Itália recusa deixar atracar navios com refugiados a bordo ou a sua justiça persegue quem os salvou do afogamento no cadafalso do Mediterrâneo. E o que pensar quando a Hungria ergue uma vedação de quilómetros e criminaliza a ajuda aos migrantes ilegais e refugiados?

O nosso problema não é uma crise humanitária, mas sim uma crise de humanidade em várias lideranças mundiais. A sociedade mais rica de sempre está a falhar a um dos seus principais desafios: responder a quem foge das guerras, da pobreza criada pelas desigualdades mundiais ou das alterações climáticas.

Sabemos que Trump tentará seguir o caminho já trilhado pelos dirigentes europeus. Da mesma forma que a União Europeia fez um acordo com a Turquia para servir de tampão ao movimento de refugiados e manter o problema longe das fronteiras europeias, os EUA pretendem pressionar o México para fazer o mesmo a sul e bem longe da fronteira norte americana. A seguir vem a lei das armas, como acontece com a militarização do Mediterrâneo. Essa é a escolha que perpetua o desespero e empurra as pessoas para situações onde arriscam as suas vidas. Face à falência moral destas lideranças, cabe-nos a nós resgatar os pilares da humanidade e afirmar que ilegal é deixar outras pessoas morrer quando temos tudo para as poder salvar.

Artigo publicado no jornal “Público” em 28 de junho de 2019

Sobre o/a autor(a)

Deputado, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, matemático.
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