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Se desejas a paz, cultiva a justiça

Quando lançaram a primeira pedra do que viria a ser o edifício da Organização Internacional do Trabalho (OIT), os seus fundadores quiseram que debaixo dela ficasse depositada esta frase: “se desejas a paz, cultiva a justiça”.

Não foi um acaso que estivesse escrita em latim (si vis pacem, cole justitiam). Tratava-se do que hoje os artistas designariam como um ato de “subvertizing” de um conhecido provérbio romano que perdurou pelos tempos e que, ainda hoje, assoma nas séries televisivas campeãs de audiências: “se queres a paz, preparar-te para a guerra” (si vis pacem, para bellum). O ano em que isto aconteceu não era um ano qualquer. Em 1919, há exatamente cem anos, o mundo saía de uma guerra de proporções jamais vistas. Com 20 milhões de mortos e muitos territórios destruídos, a I Grande Guerra acabara em novembro de 1918. A Organização Internacional do Trabalho seria fundada menos de um ano depois, em Washington, e propunha para os tempos que vinham um caminho nos antípodas da máxima romana. Em vez da guerra, a justiça.

Em 29 de novembro desse ano de 1919, os delegados das dezenas de países participantes concluem a reunião com 6 convenções, 6 recomendações e 19 resoluções aprovadas. A primeira convenção da OIT tratava de um tema que, umas três décadas antes, dera origem ao Primeiro de Maio: a duração do trabalho e a limitação da jornada diária às 8 horas, aplicada nessa altura apenas ao setor da indústria. Nesse mesmo ano, a república de um pequeno país (o nosso) dera já o exemplo ao aprovar legislação nesse sentido. Na OIT, pretendia-se um compromisso que alargasse esse princípio à escala internacional.

As décadas que se seguiram tiveram momentos marcantes. A seguir à crise de 1929, a OIT focou-se na promoção de políticas de emprego, num espírito de resposta contra-cíclica assente no investimento público, que se materializou, por exemplo, no New Deal americano. Com a emergência dos fascismos, ficou claro o incómodo com que as ditaduras conviviam com esta organização. Em junho de 1933 - com Hitler no poder desde janeiro e com a oposição a acabar de ser proibida – a Alemanha tenta substituir na OIT o representante dos trabalhadores alemães, Wilhelm Leuschner, que havia sido nomeado pelos sindicatos livres. A OIT não o permite e Leuschner intervém. Chegado à Alemanha no final da conferência, seria preso e enviado para um campo de concentração, libertado anos depois por pressão do diretor da OIT e finalmente assassinado pelos nazis em 1944. Naquele ano de 1933, a Alemanha abandonara a OIT depois da Conferência.

Com a sua sede transferida para uma Universidade do Canadá nos anos 40, a OIT aprova em 1944 um documento histórico, no seu Congresso de Filadélfia: a “Declaração dos fins e objectivos da Organização Internacional do Trabalho, bem como dos princípios nos quais se deveria inspirar a política dos seus Membros.” O primeiro princípio dessa Declaração ainda hoje vigora como pilar da organização: “o trabalho não é uma mercadoria”. Os outros princípios permanecem de uma atualidade perturbante, como a defesa da “liberdade de expressão e associação” do mundo do trabalho ou a consideração da pobreza como “um perigo para a prosperidade de todos”. A primeira “obrigação solene da Organização”, a que os países membros deviam vincular-se e realizar, ficou também definida: “o pleno emprego e a elevação do nível de vida”.

Nas últimas décadas, o caminho da OIT fez-se de muitos compromissos e de tentativas de conciliar interesses obviamente contraditórios, numa relação de forças flutuante. Mas foi um evidente contraponto político a outras instâncias internacionais, como a Organização Mundial do Comércio ou, nos anos recentes, a Troika, e enfrentou com coragem alguns gigantes. Em 1951, a Convenção nº 100 determinou a igualdade entre homens e mulheres, muito para além das questões salariais. Em 1964, a OIT aprovou uma declaração contra a política do apartheid na África do Sul, que abandonou a organização para evitar uma exclusão oficial. Daí em diante, em cada ano, a OIT analisaria a situação daquele país. A prova do seu papel no processo é o facto de, em 1990, ter sido uma das primeiras organizações internacionais em que Mandela falou depois de ser libertado. Em 1994, dez dias após a sua eleição para presidência da República, a África do Sul voltaria a aderir à OIT.

Nessa década de 1990, o papel da OIT no combate ao trabalho infantil foi especialmente relevante, também em Portugal. A partir de 1999, com Juan Somavia à frente, desenvolve e promove o conceito de “trabalho digno”, procurando com ele dar corpo à vocação social do seu mandato, à defesa do trabalho como plataforma de acesso a direitos e a proteção social, inseparável da luta pela igualdade entre os sexos e incluindo também os trabalhadores informais. É justamente nesta linha que, em 2011, na sua centésima conferência, a OIT aprova a convenção 189, sobre o trabalho doméstico. Ao definir que as trabalhadoras domésticas devem ter acesso aos mesmos direitos que os outros trabalhadores (horários razoáveis, descanso semanal, férias, regras contra o despedimento, proteção social), coisa que não acontece em quase nenhum país (incluindo o nosso), a organização contribuiu para obrigar os países a olharem para estas mais de 67 milhões de mulheres em todo o mundo que fazem um dos trabalhos mais desprotegidos e expostos à violência e ao abuso.

A Conferência dos 100 anos da OIT acaba hoje, em Genebra. Pude acompanhar ao vivo alguns dias de trabalho. Ao fim de muita discussão, foi aprovada esta manhã, por larguíssima maioria (embora com dezenas de abstenções e alguns votos contra, sobretudo dos representantes patronais mas também de uma meia dúzia de governos) uma Convenção sobre a eliminação do assédio e da violência no trabalho, que está além daquilo que muitos países já incorporaram na lei, incluindo Portugal. Já o projeto de Declaração final, feito na sequência de um Relatório sobre “O Futuro do Trabalho” corria o risco, à hora a que escrevo, de não ser aprovado. Talvez a referência à “proteção social universal desde o nascimento até a velhice”, à “ampliação da soberania sobre o tempo de trabalho” ou à “garantia laboral universal” acabem por sair do texto.

Não me admira. Olhemos à volta. Estamos de novo na era dos falcões e dos abutres, da brutalidade económica e de uma nova extrema-direita em ascensão em muitos países. Neste tempo, parece que há coisas óbvias que já devíamos ter aprendido e que são, de novo, um campo de luta. E gestos do passado cujo significado ganha, de repente, um novo sentido. Sem justiça, não haverá paz.

Artigo publicado em expresso.pt a 21 de junho de 2019

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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