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Futuro do trabalho: trabalhar mais para ganhar menos e ganhar menos para trabalhar mais?

“O futuro do trabalho” é muito agora a ordem do dia do debate sobre as questões do Emprego. Os avanços tecnológicos, como factores de “competitividade”. Mas, ao mesmo tempo, como causa de desemprego, da “catástrofe” do “fim do trabalho”.

Um debate importante, imprescindível e urgente, sem dúvida.

Contudo, para quem tem vindo a observar de perto e continuadamente o que se passa nos locais de trabalho e, sobretudo, sofrendo-o concretamente, para muitos trabalhadores, o sentimento é o de que a polarização do debate das questões do Emprego (só) no “futuro do trabalho”, escamoteia muitos problemas do “presente do trabalho” que continuam a carecer de reflexão e, sobretudo, de acção.

Digamos que quem na observação e mais ainda na realização do trabalho, em vez de sentir uma evolução nas condições em que o trabalho é realizado, experimenta um sentimento de retrocesso. E daí, tende a considerar ter menos razões para (se) questionar, animado, sobre o “futuro do trabalho” do que, preocupado, sobre “para onde volta o trabalho humano”i.

Neste sentido, para além de outros (de entre os quais relevam os que se projectam nas condições de segurança e saúde do trabalho), há dois exemplos marcantes desse retrocesso, nas últimas décadas (e especialmente na última), dos direitos dos trabalhadores: um, é o da segurança do / no / pelo emprego; o outro é o da organização e duração dos tempos de trabalho.

Estas duas questões, como outras do âmbito das relações de trabalho (designadamente, os salários), não só se relacionam entre si como influenciam e são influenciadas pelas condições de trabalho em geral.

O princípio da segurança do emprego, constitucionalmente garantidoii, está agora muito subvertido pela precariedade (“flexibilidade”) dos vínculos laborais, sendo que cada vez mais esta se torna “efectiva”iii, inclusive por, apesar de instituída como excepção, ter de facto passado praticamente a regra nos locais de trabalho.

A duração e organização dos tempos de trabalho, cujas expectativas de equilíbrio e justiça social têm referências mais do que centenárias, degeneraram, de facto, em muitos locais de trabalho, para o desregramento (aumento) da duração do trabalho e para a instabilidade do horário de trabalho. Do horizonte de redução da duração e carga de trabalho e da estabilidade dos tempos de trabalho (condição do planeamento, organização e conciliação com a vida pessoal e familiar), degenerou-se para a sobre-intensificação do trabalho em duração e em ritmo e para a desregulação (e consequente instabilidade) da organização do tempo de trabalho.

É justamente este último exemplo, o da duração e organização dos tempos de trabalho, em que este texto visa concentrar a reflexão, mais especificamente, no recurso ao “trabalho suplementar (TS)”iv.

Pretende-se focar três aspectos: um é o de, tal como na precariedade dos vínculos laborais, de instituído como excepção, o TS tender a, nos locais de trabalho, passar a recurso gestionário e patronal de regra; outro é o de a remuneração legal do TS ter retrocedido (diminuído) a valores de há dezenas de anos, em certo particular aos de há quase um século; outro, ainda, é o de, acrescendo à desregulação (incumprimento da legislação laboral) que neste domínio campeia, tais situações resultarem, por mais contraditório que pareça, da inerente regulamentação, da (actual) legislação laboral.

Está em curso um processo político, envolvendo o Governo e a Assembleia da República (especialmente a Comissão Parlamentar de Trabalho e Segurança Social), de alteração da legislação laboral, concretamente, do Código do Trabalho (CT). Nesse processo, não podem deixar de ser tidas em conta as alterações ao CT da autoria do Governo anterior, de 2011 a 2014.

Tanto quanto se sabe oficialmente por agorav, da parte do Governo, nas matérias em que anuncia “restituir direitos aos trabalhadores”, não está a reversão das alterações respeitantes ao trabalho suplementar introduzidas pelo Artº 2º da Lei 23/2012, de 25 de Junho, a qual, neste domínio (para além de noutros), eliminou ou diminuiu direitos dos trabalhadores:

- Eliminou o descanso compensatório que, para além do acréscimo de remuneração, lhes era devido no caso de TS prestado em dias úteis, em dia de descanso complementar ou em dia feriadovi. O direito a este descanso compensatório foi conferido legalmente aos trabalhadores em 1984vii, há 35 anos.

- Reduziu o acréscimo de remuneração por TS prestado naqueles dias. Assim, em geral, a redução no acréscimo por TS prestado foi de metadeviii do valor do acréscimo que já vigorava também desde 1984ix.

No caso da primeira hora de TS prestado nos dias úteis, o valor do acréscimo de remuneração a legalmente dever ser pago a partir de Agosto de 2012 (25% da retribuição horária) retrocedeu, mesmo, a metade do valor (50% da retribuição horária) que já foi praticado a partir de Outubro de 1934x, há 85 anos. Esta redução do acréscimo de remuneração na primeira hora de trabalho suplementar prestado em dias úteis foi de tal ordem que, agora, esse TS tem um custo para os empregadores inferior ao custo de um hora de trabalho prestado no horário normal de trabalho (como é evidenciado num recente estudo do Observatório sobre Crises e Alternativas, do Centro de Estudos Sociais – CES - da Universidade de Coimbraxi).

Mas, para além deste retrocesso nos direitos dos trabalhadores eliminando-os ou diminuindo-os, em que é que, pelo menos no domínio do TS, se traduz mais o impacto desregulamentador de direitos sociais desta Lei 23/2012 (aliás, em sintonia com praticamente toda a legislação laboral decidida pelo Governo anterior e, mesmo, na senda da publicada pelo menos nos últimos 20 anos, inclusive nos Códigos do Trabalho de 2004 e 2009)?

Desde logo, objectivamente, num incentivo patronal ao recurso generalizado ao trabalho suplementar. Assim, apesar de, legalmentexii, o TS só dever ser utilizado em situações de excepção, de tão apetitosamente “barato” se ter tornado para os empregadores (inclusive com custos inferiores ao trabalho em horário normal, pelo menos na primeira hora de TS, como se referiu), passou por aí muito a ser instrumento gestionário de regra. Passou, de facto, de suplementar a ... "normal”.

Fica isso bem evidente no enorme crescimento, a partir de 2012, mesmo depois da diminuição mais acentuada do desemprego a partir de 2015, do recurso por regra ao trabalho suplementar: de 3.731 horas realizadas no primeiro trimestre de 2011, passou-se para 5.081 horas no terceiro trimestre de 2018. Não só “o número de horas de trabalho suplementar apresentou uma tendência consistente de crescimento...” como “houve um aumento do número de trabalhadores que realizaram trabalho suplementar”xiii.

É certo que a Lei (CT) prevê limites (diários e anuais) no recurso ao trabalho suplementarxiv. Só que, com as (baixas) retribuições por trabalho em horário normal que são praticadas, muitos trabalhadores não só “aceitam” fazer trabalho fora do horário normal (TS) e muito para além desses limites legais como, mesmo, tal lhes “interessa” por já contarem (e assumirem com base nisso compromissos pessoais) com essa forma de “compor” o salário mensal.

A desregulação (incumprimento da Lei – CT) que isso constitui é agravada pelo facto de, tendo passado a ser de montantes tão baixos esses acréscimos, haver também “interesse” dos trabalhadores (e, por razões óbvias de diminuição de “custos do trabalho”, de muitos empregadores) em que muitas dessas remunerações por TS não sejam devidamente registadas (e muito menos declaradas, pelo menos na totalidade) à ACTxv e à Segurança Social, com a consequente sonegação de contribuições (23,75% da parte do empregador e 11% da parte do trabalhador).

Desregulação ainda mais grave, quanto a muito do trabalho suplementar que tem vindo a ser realizado, é, para além da sua clandestinidade ou subdeclaração, a de nem sequer ser pago aos trabalhadores a remuneração devida ou, mesmo, qualquer remuneração (o que, ainda que dito de forma figurativa, constitui “trabalho escravo”)”xvi.

O que se passa em matéria de desregulação da organização e duração dos tempos de trabalho não pode ser dissociado da muita precariedade laboral que ainda se mantém, visto que, muito em decurso desta condição fragilizante da sua posição na relação de trabalho, a maior parte dos trabalhadores, ainda que consciente esteja dos seus direitos quanto a realização de trabalho suplementar, não “arrisca” recusar-se a prestar trabalho fora do horário normal mesmo em condições ilegais (até não lhe sendo paga qualquer remuneração), em virtude da natureza precária da sua relação de trabalho (pelo menos nos casos de contrato de trabalho a termo ou temporário).

Em síntese, não é arriscado afirmar-se que, objectivamente, esta Lei (23/2012, de 25/6) potenciou, neste domínio, o crescimento da desregulação, da ilegalidade.

Ora, como se infere do que precede, o pressuposto de regulação nesta matéria pela via de exercitação de direitos por parte dos trabalhadores carece de sustentação.

Por outro lado, o controle público sistemático e abrangente por parte da Inspecção do Trabalho (em Portugal, Autoridade para as Condições de trabalho – ACT) passa a ser ainda mais dificultado, se não, na prática, impossibilitado. E não apenas por, assim, ser difícil a este Serviço Público apoiar-se na exercitação de direitos (ou até só denúncia da sua violação) por parte dos trabalhadores. Também pela quebra que se tem verificado na sindicalização e na organização e representação colectiva e sindical dos trabalhadores nos locais de trabalho que nisso os pudesse apoiar, inclusive na inerente informação, eventual diálogo com a entidade empregadora ou mediação da denúncia / interlocução com a ACT, outras entidades competentes (Segurança Social, por exemplo) e tribunais.

Acresce que, pela conhecida insuficiência do número de inspectores do trabalho existentes em Portugalxvii (para já não referir as suas condições de trabalho, de apoio administrativo, de carreira e de estatuto), não se poder deixar de ter em conta, para além do imenso âmbito de (outras) matérias que fazem parte da missão da ACTxviii e que também carecem de (exigem) intervenção, a vastidão do número e diversidade do tipo e dimensão de empresas e número de trabalhadores envolvidos.

Aumenta essa dificuldade o facto de, também nesta matéria, sob o argumento da desburocratização e “simplexificação”, terem vindo a ser suprimidos legalmente (inclusive pela mesma Lei 23/2012) vários registos, comunicações e outros procedimentos administrativos até então obrigatórios nos quais, como instrumentos de apoio ao controle público das condições de trabalho, muito assentava a fiabilidade, permanência, eficácia e eficiência da acção da ACT no domínio da organização e duração dos tempos de trabalho, inclusive da realização de trabalho suplementar.

É dispensável relevar as repercussões que deste domínio decorrem em matéria de emprego, dado o que a legislação actual constitui objectivo estímulo patronal à opção por realização de trabalho suplementar "barato" (algum mesmo com menos “custos” que o realizado em período normal) em vez de admissão de trabalhadores.

Tal como é dispensável salientar as nefastas implicações que, quer ao nível profissional propriamente dito (inclusive no domínio da segurança e saúde no trabalho), quer ao nível pessoal, familiar e social, pode ter o crescente recurso ao trabalho suplementar (ilegal e mesmo legal).

Mas há, ainda, uma outra perversa consequência do que se está a passar em matéria de organização e duração dos tempo de trabalho, e especificamente de recurso ao TS, que por ser menos evidente se impõe aqui melhor clarificar e reflectir.

Como já se referiu, o que a Lei 23/2012 fez com estas alterações ao regime de trabalho suplementar foi muito, de facto, aumentar a duração de trabalho "normal".

Do ponto de vista de análise teórica, aumentar a duração do trabalho sem correspondência de aumento de remuneração é, objectivamente, diminuir a retribuição (a retribuição por hora normal de trabalho passa, de facto, a valer menos, na medida em que a mesma retribuição semanal ou mensal passa a ser distribuída por maior número de horas). Ou seja, isso consubstancia trabalhar mais ... para ganhar menos.

Por outro lado, do ponto de vista prático, do que se passa no “terreno”, nos locais de trabalho (que não é possível dissociar da vida pessoal / familiar / social dos trabalhadores), diminuir a remuneração sem correspondência de diminuição do tempo de trabalho é, objectivamente, aumentar a duração "normal" de trabalho, na medida em que, agora, os trabalhadores, para terem a mesma retribuição do trabalho suplementar, têm que trabalhar mais (o dobro).

Estamos, portanto, perante não só a perversidade de trabalhar mais para ganhar menos mas, também, perante a de, simétrica – que muito é aproveitada como instrumento gestionário patronal -, ganhar menos ... para trabalhar maisxix.

“Ouvimos e lemos” toda a retórica que enfatiza a menor penosidade e intensificação do trabalho no “trabalho do futuro” e, mesmo no “trabalho do presente”, a “qualidade do emprego”, com vista a uma melhoria das condições de trabalho e de vida das pessoas que trabalham (em vários planos, económico, humano, familiar, social, cultural ...) e seus óbvios reflexos na sociedade.

É de presumir que tal só é viável, a nível dos locais de trabalho, pela organização e gestão concreta das relações e condições de trabalho. E, a nível político, pela decisão e efectiva aplicação de um coerente quadro normativo.

Então, “não podemos ignorar” que, instituindo e mantendo legislação laboral desta natureza, nega-se toda essa perspectiva induzida pela retórica animadora do “futuro do trabalho” e da “qualidade do emprego”.

“Futuro do trabalho” e “qualidade do emprego”: trabalhar mais para ganhar menos e ganhar menos para trabalhar mais?


Notas:

i “Para onde volta o trabalho humano?” – Público, 1/5/2016 - https://www.publico.pt/2016/05/01/economia/opiniao/para-onde-volta-o-trabalho-humano-1730650

ii Artigo 53º da CRP.

iii “A efectividade da precariedade” – Público – 30/5/2019 - https://www.publico.pt/2019/05/30/economia/opiniao/efectividade-precariedade-1874689

iv “Considera-se trabalho suplementar o prestado fora do horário de trabalho” (Artº 226º - Nº 1 do Código do Trabalho).

v Objectivamente, pelo Acordo entre o Governo, UGT e confederações patronais, assinado em 18/6/2018, na Comissão Permanente da Concertação Social (“Combater a precariedade e reduzir a segmentação laboral e promover um maior dinamismo da negociação colectiva”).

vi Este descanso compensatório ainda se mantinha previsto no Artº 229º do CT, na redacção da Lei Nº 7/2009, de 12 de Fevereiro, artigo esse que a Lei 23/2012 revogou.

vii Decreto-Lei Nº 421/83, de 2 de Dezembro (Artº 9º): descanso compensatório de 25% do número de horas suplementares trabalhadas, o qual poderia ser gozado até 90 dias após o somatório dessas frações de descanso compensatório atingirem o número de horas igual ao período normal de trabalho diário (8 horas, por regra).

viii Artº 268º do CT, na redacção da Lei 23/2012: dias úteis, 25% na primeira hora de trabalho suplementar e 37,5% na segunda hora e seguintes; descanso complementar e feriados, 50%.

ix Decreto-Lei Nº 421/83, de 2 de Dezembro (Artº 7º): dias úteis, 50% na primeira hora de trabalho suplementar e 75% na segunda e seguintes; descanso complementar e feriados, 100%.

x Decreto-Lei 24402, de 24/8/1934 (Artº 15º): já previa que todo o trabalho suplementar fosse pago com 50% de acréscimo da retribuição normal. Se bem que houvesse uma descida deste valor (para 25% da retribuição normal) só entre Janeiro de 1972 (Artº 22º do decreto-Lei Nº 409/71, de 27/9) e Janeiro de 1984, data em que foi reposto o valor do acréscimo de 50% da retribuição normal, mantido na posterior legislação publicada (inclusive nos CT de 2004 e 2009) até à entrada em vigor da Lei 23/2012, em Agosto de 2012.

xi Cadernos do Observatório Nº 13 - “Horas extraordinárias: por que está a lei a incentivar o trabalho suplementar?” (Maio de 2019).

xii Artº 227º do CT

xiii Referido estudo do Observatório de Crises e Alternativas – do CES /UC.

xiv Artº 228º do CT: por dia, nos dias úteis, duas horas e, nos feriados, um número de horas igual ao período normal de trabalho; por ano, dependendo da dimensão da empresa em função do número de trabalhadores: até 175 horas anuais, nos casos de microempresa (até 9 trabalhadores) e pequena empresa (de 10 a 49 trabalhadores); até 150 horas anuais, nos casos de média (de 50 a 249 trabalhadores) ou grande empresa(250 ou mais trabalhadores);

xv Artº 231º do Código do Trabalho.

xvi Segundo o referido estudo do CES / Universidade de Coimbra (11): em 2017, 53% dos 213 milhões de horas de TS de facto realizadas por 572.000 trabalhadores, num valor de 1,5 mil milhões de euros, ficaram por pagar cerca de 814 milhões de euros; em 2018, 49% dos 221 milhões de horas de TS realizadas por 576.000 trabalhadores, num valor de 1,7 mil milhões de euros, ficaram por pagar cerca de 820 milhões de euros; de 2011 a 2018, dos 1,6 mil milhões de horas de TS realizadas por um número médio anual de 510.000 trabalhadores, num total de remunerações por TS que deveria ascender a 12.000 milhões de euros, ficaram por pagar aos trabalhadores, no total destes 8 anos, 6,6 mil milhões de euros.

xvii O respectivo Comité de Peritos da OIT recomenda, no caso de uma “economia de mercado industrializada” como a portuguesa, um rácio de um inspector do trabalho por cada 10.000 trabalhadores, o que implica, mesmo esquecendo a complexificação do controle público que as mudanças no mundo do trabalho têm provocado, dever ser actualmente o quadro de pessoal da ACT composto por, pelo menos, 550 inspectores. Se bem que haja concursos a decorrer para mais 120, serão actualmente “no terreno” apenas cerca de 290 (dado o progressivo decréscimo com reformas e saídas para outros serviços). Quer o Parlamento Europeu (em Janeiro de 2014), quer o Conselho da Europa (em Janeiro de 2018), já alertaram o Governo português para esta insuficiência de inspectores do trabalho. Aliás, incidindo nisso, existe mesmo uma Resolução da Assembleia da República (Nº90/2016, de 22/4/2016).

xviii Decreto Regulamentar Nº 47/2012, de 31 de Julho, para além de outra legislação.

xix Em Portugal, a duração (real e legal) de trabalho é das mais altas da União Europeia, numa altura em que na própria Alemanha já se assinou um acordo social para reduzir a 28 horas o período normal de trabalho.

Sobre o/a autor(a)

Inspector do trabalho aposentado. Escreve com a grafia anterior ao “Acordo Ortográfico”
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