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Dias D

Esta semana comemoraram-se os 75 anos do Dia D. Mais de 10 mil homens das tropas aliadas britânicas desembarcaram na Normandia, naquele que ficou conhecido como o momento de viragem na segunda guerra mundial.

Milhares de homens perderam a vida e esse é um facto histórico marcante de de importância inegável, mas não é a história toda. Nunca tendo morrido de amores pela União Soviética, parece-me muito limitada a forma como se olha para o Dia D como “o dia” e incompreensível o apagão histórico que é feito ao papel das tropas soviéticas para o fim da segunda guerra mundial com milhões de vidas perdidas. Sabemos que a história elege sempre os seus vencedores, mas também sabemos dos impactos que cada leitura histórica têm na percepção global. O fim da segunda guerra mundial foi, sim, um dos melhores momentos da nossa memória, daqueles em que sentimos e sabemos que ganhámos todos.

Mas vamos falar de outro desembarque. Avisando já que não se trata de comparações , que no mínimo seriam impossíveis, esta semana não quero contribuir para outro apagão, este passado apenas cinco dias antes da efeméride. No dia 1 de Junho, 13 pequenas embarcações com refugiados foram bloqueadas pelas forças de fronteira francesas e britânicas. O trajecto foi mais ou menos o mesmo, mas em sentido contrário. Falo-vos da hipocrisia de ainda não terem sido criados canais legais de passagem para que possam parar de morrer pessoas nos mares da Europa fortaleza. Falo-vos de muitas pessoas que fogem de guerras, mas estão entaladas numa encruzilhada. Entre o discurso oficial de que tem de haver uma resposta para os refugiados e a total ausência de canais de passagem legais, ou seja, de pessoas que ficam literalmente em terra de ninguém. Destas pequenas 13 embarcações houve apenas um silêncio ensurdecedor.

Também esta semana, uma dupla de advogados entregou uma queixa ao Tribunal Penal Internacional tendo em vista a acusação da União Europeia e dos Estados Membros pela morte de milhares de pessoas no Mediterrâneo. É uma acusação fundamentada em 245 páginas que contém todo o processo desde que se decidiu acabar com o programa Mare Nostrum, que salvou 150 mil e 810 vidas, até aos acordos com a Turquia e a Líbia, o retorno forçado de mais de 40 mil pessoas, a criminalização das ONGs de salvamento ou os inúmeros relatos de violações sistemáticas de direitos humanos nos campos de detenção assinados e financiados pela UE, que incluem escravatura, violações, tortura ou até mesmo execuções. A resposta do porta-voz da União Europeia foi a de não comentar um processo “não existente” e que “a nossa prioridade foi sempre e continuará a ser proteger vidas”. Se fosse apenas um processo de dissociação cognitiva até podia ter tratamento. Mas sabemos que não é isso. Daqui a 75 anos haverá uma história dos desembarques impedidos no presente. Só não sei se deste lado se poderá contar uma história de vencedores.

Artigo publicado no jornal “Diário de Notícias” a 8 de junho de 2019

Sobre o/a autor(a)

Eurodeputada, dirigente do Bloco de Esquerda, socióloga.
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