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Finalmente, um Estatuto para cuidar de quem cuida

Quando fizeram o primeiro encontro nacional, e não foi assim há tantos anos, as cuidadoras e cuidadores começaram tudo do zero, ao fim de décadas de invisibilidade e de falta de reconhecimento.

A própria palavra “cuidadores” não aparecia no espaço público – nem sequer era utilizada pelos próprios para se nomearem. Agora, Portugal vai ter finalmente um Estatuto do Cuidador e da Cuidadora Informal. Esse facto é, em si mesmo, de assinalar. São cerca de 800 mil as pessoas que, no nosso país, em algum momento, já foram cuidadores e cuidadoras informais. Cerca de 250 são-no a tempo inteiro: 24 horas por dia, 7 dias por semana. Heróis e heroínas anónimas, provas vivas de entrega e generosidade, estas pessoas sabem também na pele o que é sofrer, sentir culpa, solidão, cansaço, as forças a esgotarem-se. Um Estatuto é um primeiro passo para começar a cuidar de quem cuida.

A vitória desta semana é, inteiramente, das cuidadoras que fizeram este percurso improvável e difícil de mobilização. De quem deu a cara, fez uma petição, saiu à rua, marcou presença no parlamento, exigiu dos partidos que se mexessem, constituiu uma associação, interpelou autarcas, procurou solidariedades noutros movimentos, conquistou a atenção da comunicação social, conseguiu o apoio empenhado do Presidente. Dizer isto é tanto mais merecido para aquelas e aqueles que o fizeram sabendo que já não seriam, provavelmente, abrangidas pelo Estatuto por que estavam a lutar. Mas sabiam que estavam a cuidar do futuro de outros.

Depois de mais de um ano de audições, reuniões, debates públicos, encontros e de muitas negociações difíceis, foi apresentado esta semana o texto conjunto a que foi possível chegar no Parlamento. Não entrarei no detalhe de todo o processo legislativo. Mas para avaliar onde chegámos é preciso lembrar de onde viemos. Quando se iniciou o debate na Assembleia, apenas um partido tinha apresentado um projeto de lei para criar o Estatuto e o Governo resistiu muito, até há poucos dias, a que o resultado desta negociação pudesse ter, sequer, a forma de um Estatuto.

O que ganhámos

Aqui chegados, o que é que este texto tem de mais importante? O que se alcançou com ele, que não estava garantido no início?

  1. Chamar-se Estatuto. Não é irrelevante, porque dá um enquadramento para o futuro. Ou seja, o primeiro passo legislativo era mesmo este: criar uma estrutura legal na qual inscrever direitos. Existindo essa estrutura, é sempre mais fácil completá-la porque já lá está. Mesmo que hoje sintamos que lhe faltam coisas e muita concretização.
  2. Definirem-se direitos e deveres. Ter escrito, preto no branco e numa lei, que os cuidadores e cuidadoras têm direito a acompanhamento e apoio psicossocial, a formação e capacitação, a participarem do plano de intervenção e cuidados, a apoio social, ao descanso e à conciliação com a vida profissional não é irrelevante. Mesmo que seja preciso estar vigilante e ser exigente para que a lei escrita corresponda à lei na prática.
  3. O descanso do cuidador. Quando iniciámos este debate, diziam-nos frequentemente que o descanso da cuidadora já era uma possibilidade, por via do internamento na Rede de Cuidados Continuados. Mas sabemos da enorme limitação dessa resposta: por ausência de vagas na Rede e pelo preço a pagar. O que se conquistou e inscreveu no texto foi isto: o descanso do cuidador pode ser feito por via do internamento da pessoa cuidada na Rede de Cuidados Continuados (que terá de abrir muito mais vagas), mas também em estruturas residenciais para idosos ou lares (o que aumenta a oferta) e, muito importante, através do apoio domiciliário. É bom lembrar que, no início, esta última possibilidade era contundentemente rejeitada pelo Governo. A este nível, há ainda uma outra norma que conseguimos, nos últimos dias, incluir na lei: será alterada a forma de calcular o que o cuidador tem de pagar na Rede de Cuidados Continuados, para diminuir o custo desta resposta.
  4. Um novo apoio social. Com este Estatuto, cria-se um subsídio de apoio ao cuidador. Trata-se de uma nova prestação social, de natureza pecuniária, cujo desenho exato só conheceremos dentro de uns três meses, quando o Governo a regulamentar. Mas tem uma importância capital, porque é uma resposta aos cuidadores que, por cuidarem, deixaram de ter salário e foram atirados para uma situação de carência económica e de dificuldade.
  5. A proteção da carreira contributiva. No início desta discussão, diziam-nos que era impossível acautelar a carreira contributiva dos cuidadores: “se não têm emprego, não têm descontos, nada a fazer”, alegavam. Conseguimos dar um passo contra essa fatalidade. Ao prever a possibilidade de acesso ao Seguro Social Voluntário, está a acautelar-se a carreira contributiva e a pensão futura. Muito importante é, neste campo, uma das últimas normas que alcançámos na negociação: uma majoração ao subsídio de apoio ao cuidador para que quem não tem rendimentos receba um valor extra equivalente à contribuição do Seguro Social Voluntário, e fazer assim os seus descontos para a Segurança Social. Há ainda duas outras medidas da lei que contribuem, ainda que de forma limitada, para proteger um pouco mais a carreira contributiva. Uma diz que, se passar a trabalhar a tempo parcial, a cuidadora continua a ter registos de remuneração equivalentes ao tempo completo (para efeito da Segurança Social). Outra atribui uma equivalência à entrada de contribuições (para efeitos de carreira contributiva) quando a pessoa fica sem trabalho e não tem subsídio de desemprego (ou seja, passa a ficar com o registo de contribuições durante o que seria o prazo máximo do subsídio de desemprego).

O que fica por fazer

Isto é tudo o que queríamos? Não, não é. É muito se comparado com o total vazio que existia até hoje. Mas há outro tanto que fica por fazer. Há medidas cujo alcance real só poderá ser avaliado quando forem concretizadas. E há lutas para o futuro das quais não podemos desistir. Destaco três.

  1. Abrir o universo abrangido. Na versão final do texto conjunto apresentado, prevaleceu uma definição de cuidador intimamente associada à relação familiar, ainda que possa ir até ao 4º grau. Devíamos deixar em aberto a possibilidade de outras situações (certamente minoritárias, mas nem por isso inexistentes) de cuidadores-vizinhos. Além disso, o universo dos beneficiários da prestação de apoio aos cuidadores pode ser maior ou menor conforme se regulamente a prestação. O que implica estarmos atentos para que o Governo, ao fazê-lo, não aperte a condição de recursos para lá do razoável. E perceber que novos valores, concretamente, serão aplicados ao descanso na Rede de Cuidados Continuados.
  2. Reconhecer os cuidados prestados no passado. Se uma das conquistas mais importantes deste processo foi ter-se reconhecido que era preciso encontrar solução para a carreira contributiva, há dezenas de milhares de pessoas que ficam completamente de fora da solução encontrada, porque a proposta de reconhecer para trás os cuidados para efeito da pensão de velhice teve a oposição do PS. Se não conseguimos ainda reconhecer os cuidados para trás, é uma causa justa da qual não devemos desistir.
  3. Adequar a lei laboral. O direito à “conciliação com a vida profissional”, que está na lei, é impossível de ser concretizado sem mexer na lei do trabalho, designadamente alargando licenças e prevendo mecanismos de redução de horário para os cuidadores e cuidadoras. É sabido que o PS – aliás, com uma posição semelhante ao PSD – recusou alterar o Código de Trabalho sem o acordo dos patrões, que não querem conferir novos direitos. Mas o Estatuto que aprovámos tem lá uma porta entreaberta que temos de saber escancarar. Ele obriga a que sejam identificadas, nos próximos 4 meses, as medidas laborais necessárias. Verdadeiramente, nós já sabemos quais são: a formulação que ficou foi só uma forma de o PS atirar a discussão para a frente. Mas cá estamos, insistentes. É que lei laboral tem mesmo de se adaptar a esta realidade. É mais uma luta que vamos ter de ganhar.

Artigo publicado em expresso.pt a 31 de maio de 2019

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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