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O diabo afinal chegou (e foi-se embora)

A direita ficou em transe porque ajudou o primeiro-ministro a tornar-se o melhor defensor da sua posição histórica de que se deve limitar os salários como modo de ajustamento orçamental.

Sempre tive alguma curiosidade em saber como era este diabo tão anunciado. A direita temia-o e desejava-o, esperando que tivesse as faces canhas de um comissário europeu que arrasasse o aumento do salário mínimo ou outras tropelias que, já se sabe, arruínam a nossa pátria, e que, num gesto pesado, reconduzisse a economia aos bons princípios da austeridade. Mas foi afinal pela mão do primeiro-ministro que o demo se instalou entre nós, na vertigem de um apocalipse orçamental e com o cheiro a pólvora de uma tremenda ameaça de eleições antecipadas.

 A operação foi tão bem feita que houve mesmo uma fanfarra de cívicos que se levantou a bater palmas. Um “politicão”, disse um. “Cheiinho de razão”, assevera outro. Um “génio”, desbarreta-se outro. Na direita ilustrada, a corrida foi para saber quem mais elogiava António Costa. Veio logo depois a fila dos “desiludidos” e dos “angustiados” com o PSD e CDS. Chegaram entretanto os técnicos, a confirmar, como na missa do sétimo dia, que o país estava em risco de desabar se aos professores fosse contado o tempo do seu trabalho nos termos da lei (que ninguém propôs mudar): um jornalista escreveu que a medida “dá cabo das contas do país”, um académico asseverou, desenvolto, que o custo seria “uma fração de 1%” do PIB (vá-se lá saber o que isto quer dizer) e o Governo foi atirando números tão díspares como 37 milhões, ou 240 milhões, ou 850 milhões, ou 1200 milhões, que importa, são muitos milhões, é pró menino e prá menina. A este espetáculo do impressionómetro foi chamado “contas certas”.

Feitas as contas que importam, esse impressionómetro regista três vitórias esmagadoras para Costa.

Primeira, ficou reforçada a ideia de que quem trabalha não pode reivindicar salário (“dá cabo das contas do país”).

Segunda, gerou-se a ideia de que os salários não devem ser determinados por lei ou por contrato, mas pela conveniência do Terreiro do Paço e, como sugere a direita em arremedo de solução, devia haver uma parte variável do salário que fosse negociada em Bruxelas. Somos todos peças na máquina cósmica do Ministério das Finanças. Antes a doutrina era contratualista, antes todos se regiam pelo “Estado de Direito”, agora esqueça tudo, o que passou a contar é o capricho do ministro. O salário será o que ele mandar.

Terceira vitória de Costa, esta a mais importante, criou-se um movimento de ódio social contra os professores, alimentado pelo discurso da igualdade na desgraça. Isto vai ter consequências duradouras e é um mundo novo que as direitas nunca conseguiram impor. O Governo convenceu a maioria da população de que a sua vida pode ficar melhor se os professores perderem o direito a salário legal.

Estes três triunfos ideológicos são notáveis, sendo que todos eles colocam o Governo no trono da cultura da direita. Mas que ninguém se engane, era mesmo o que pretendia e foi o que conseguiu.

Por isso mesmo, a direita ficou em transe porque descortinou que ajudou o primeiro-ministro a tornar-se o melhor defensor da sua posição histórica, a noção de que se deve limitar os salários como modo de ajustamento orçamental. Afinal, o diabo veste rosa. Chegou, viu e venceu: assistir às inflexões do PSD e CDS, oferecendo com uma mão e prometendo nada pagar com a outra, ou à exasperação de quem pede que este fingimento seja aprovado, mesmo sabendo que não paga nada aos professores, é a prova de que o Governo ganhou a parada (para não falar do Presidente, que sem que fosse visto a mover um dedo, evitou eleições, encerrou a crise e seguiu viagem).

O problema é que, vencedor na sexta-feira, o diabo se foi embora logo no domingo. E talvez seja esse o maior risco para o Governo: foi tudo muito fingido, tudo mal explicado, os números eram fantasiosos, a representação foi gongórica. Uma crise colossal para eleições em fim de julho em vez de início de outubro? Ler os jornais internacionais sobre esta fabricação é um exercício penoso: não percebem nada e, no melhor dos casos, oferecem como explicação uma noveleta latina de faca e alguidar.

Dentro de portas também não serão poucas as pessoas, ou por pouca paixão partidária, ou por sentido das proporções, a perguntar se este diabo que vale 0,001 do PIB não era afinal um pouco exagerado e se a política vale todos estes enfatuamentos. Afinal, o diabo é um farsolas. E nunca nos evita o problema de sempre: se com a sua visita enxofrada começou a campanha para as eleições legislativas, voltamos à velha questão que se vai colocar a cada pessoa que pegue num boletim de voto: quer mesmo um governo PS com maioria absoluta? Ora, nesse campeonato é melhor não dar por certos os resultados. Confiança a mais é prosápia. Talvez o Governo se arrisque mesmo a ser vítima do seu próprio entusiasmo com o sucesso, que o leve a pensar que basta amedrontar o país para ter os votos e que tudo se resume a uma parada triunfal. Este diabo bem pode vir a ser o fantasma que persegue os vencedores de hoje.

Artigo publicado em expresso.pt a 7 de maio de 2019

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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