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Potenciais criminosos

Maria José pedira a Ángel que se chegasse o dia em que se tornasse totalmente dependente, ele a ajudasse a morrer. Ángel fez aquilo que prometera a Maria José. Ajudou-a a morrer!

Maria José Carrasco tinha 30 anos quando lhe foi diagnosticada esclerose múltipla. Casada com Ángel Hernandez, não tiveram filhos, viviam um para o outro. Alguns anos depois do diagnóstico, a situação começou a complicar-se. Maria José precisava de ajuda para se deslocar e começou a depender do marido para tarefas simples do dia-a-dia. Ainda com 40 anos tentou suicidar-se. Não queria perder a autonomia. Ángel chegou a tempo de impedir a consumação do ato e prometeu a Maria José que iria reduzir o horário de trabalho para estar mais tempo com ela em casa. O tempo passou e a doença piorou, Maria José estava cada vez mais dependente. Ángel reformou-se décadas antes do tempo, para estar com Maria José, ajudá-la a tomar banho, a comer, a deslocar-se. Destruiu paredes da casa para facilitar a circulação. Comprou muitos filmes para verem juntos. Maria José foi perdendo a visão e Ángel passou a ser o narrador das imagens na televisão. Passados 20 anos desde a tentativa de suicídio, Maria José precisava de ajuda para comer, para tomar banho, para sair da cama, para ver os filmes que Ángel lhe comprava. Tomava doses elevadas de morfina diária. Falar era já quase impossível. Não conseguia segurar objetos com a mão. Engolir era um tormento. Depois de conhecer o diagnóstico, por várias vezes, Maria José pedira a Ángel que se chegasse o dia em que se tornasse totalmente dependente, ele a ajudasse a morrer. Ángel fez aquilo que prometera a Maria José. Ajudou-a a morrer!

Quantos de nós não comentamos já com a nossa família, os nossos amigos, que preferíamos morrer a ficar totalmente dependentes? Agarrados a uma cama a olhar para um teto, com necessidades permanentes de cuidados de outras pessoas? Quantas vezes já não ouvimos os nossos pais, o nosso melhor amigo dizer: se eu um dia ficar assim, prefiro que me ajudes a morrer! E se acontecer mesmo convosco? Se em vez da Maria José, for o amor da vossa vida a pedir para o ajudarem a morrer? Vão respeitar a lei e ignorar a pessoa que amam ou fazer aquilo que faria qualquer ser humano que ama? Aquilo que fez Ángel?

Alguém disse que por amor faria tudo. Pois eu não sou exceção. O que significa que se me acontecer a mim, serei preso. Sou um potencial criminoso, pois não tenho nenhuma dúvida que por alguém que amo, arriscaria tudo, mesmo que esse tudo significasse a prisão. Quantos de nós não serão potenciais criminosos? Ou melhor, quantos de nós amam de verdade e acima de tudo? Quem é o ser humano, dotado de um mínimo de dignidade, compaixão e decência que é capaz de julgar Ángel Hernandez? De o considerar criminoso, de o acusar de qualquer outra coisa que não seja amar com extrema dedicação a própria esposa? Então se somos todos, ou pelo menos muitos, potenciais criminosos perante a lei, não seria muito mais justo mudar antes a lei?

O debate sobre a eutanásia é muito complexo, cheio de multitudes – fala-se de ética e deontologia profissional, de moral, da enorme capacidade que a medicina hoje demonstra, de cuidados continuados e paliativos, da lei e da sua função dissuasora e preventiva, da constitucionalidade, do código penal, do conceito de homicídio, da proteção da vida, da depressão, da finitude, do individualismo, da organização dos cuidados de saúde,... Fala-se e discute-se muito profundamente sobre isto tudo! No entanto, bem espremido, o tudo resume-se a isto: Ángel, Maria José e o amor que os une! E o Ángel que todos nós temos cá dentro e, mais cedo ou mais tarde, vai inevitavelmente atingir alguns de nós. Nós, seres humanos, com esta capacidade tão estranha e inexpurgável para amar quem está à nossa volta. Nós, potenciais criminosos.

Sobre o/a autor(a)

Médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
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