A criação de um mercado à custa do Serviço Nacional de Saúde

porMoisés Ferreira

11 de April 2019 - 17:30
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Não restam dúvidas. O PSD e o CDS nunca quiseram um SNS universal, geral, gratuito e onde o Estado se assuma como principal prestador de cuidados de saúde.

À primeira oportunidade, tentaram reverter essa enorme conquista que foi a criação do SNS, substituindo-a pela inefável lógica do mercado.

A Lei de Bases da Saúde de 1990 precisa de ser revogada e não é apenas por uma questão de atualização ou modernização das bases que dela constam. A Lei de Bases de 1990 precisa de ser revogada porque ela faz mal ao Serviço Nacional de Saúde. Ela é um fato feito à medida para que os negócios privados se instalassem e propagassem na área da saúde. E já se sabe que quando a saúde é tratada como um negócio, os utentes deixam de a ter garantida como um direito.

Leia-se a Base XXXVII dessa lei:

1 - O Estado apoia o desenvolvimento do sector privado de prestação de cuidados de saúde, em função das vantagens sociais decorrentes das iniciativas em causa e em concorrência com o sector público.

2 - O apoio pode traduzir-se, nomeadamente, na facilitação da mobilidade do pessoal do Serviço Nacional de saúde que deseje trabalhar no sector privado, na criação de incentivos à criação de unidades privadas e na reserva de quotas de leitos de internamento em cada região de saúde.

Esta base – feita ao gosto do PSD/CDS e das suas clientelas – diz taxativamente que o SNS deve abdicar dos seus trabalhadores, dos seus recursos orçamentais e até das suas camas de internamento para que estes possam alimentar o setor privado. Ou seja, o SNS deve destruir deliberadamente a sua capacidade de resposta para que os privados tenham um mercado para atuar e depois o SNS se veja a contratualizar com os privados.

Estas orientações perversas tiveram, como seria de esperar, consequências negativas para o SNS e para os utentes. Analisemos, com maior detalhe, a questão das camas de internamento:

Segundo o INE, entre 2007 e 2017 as camas públicas foram reduzidas de 27.086 para 24.650 (-3.036), enquanto as camas privadas cresceram, no mesmo período, de 9.134 para 10.903 (quase 2000). Se olharmos para esta evolução numa série mais longa verificaremos a mesma tendência e uma proporção quase direta entre a destruição de camas públicas e a criação de camas privadas.

Questionamo-nos, então: será que a destruição de camas no público aconteceu porque essas camas já não eram necessárias? Foi isto um reflexo da tão falada ambulatorização de cuidados? Ou aconteceu, de forma deliberada, para que os hospitais públicos tivessem depois de contratualizar serviços de internamento com respostas privadas, transferindo assim respostas e orçamento para os grupos económicos que operam na saúde?

Ora, para ter uma resposta a esta pergunta, o Bloco de Esquerda questionou todos os hospitais do país sobre a evolução do seu número de camas, a contratualização que fazem com privados e as despesas associadas a essas contratualizações.

Olhando para as respostas de cerca de metade dos centros hospitalares do SNS (as unidades da ARS Norte e da ARS Algarve ainda não responderam) é já possível ter uma visão da realidade: estes hospitais, entre 2008 e 2018, perderam 1768 camas, ao mesmo tempo que (em 2018) se viram obrigados a contratualizar 314 camas com entidades privadas, uma opção que custou ao SNS mais de 4,6 milhões de euros no ano passado.

Com estes dados, ainda que parciais, torna-se evidente que a redução de camas públicas que aconteceu ao longo de vários anos não aconteceu por mera desnecessidade dessas camas, mas sim como forma de criar e alimentar um mercado artificial para o privado se instalar. Como é fácil de perceber, o problema é que o mercado do privado na saúde só é possível à custa da degradação e destruição de resposta do público.

Caso paradigmático é o Centro Hospitalar Lisboa Norte, constituído pelo hospital Pulido Valente e pelo hospital Santa Maria. Este centro hospitalar perdeu, nos últimos 10 anos, 230 camas de internamento, vendo-se agora ‘obrigado’ a contratualizar 116 camas privadas. A pergunta óbvia é: por que razão se fecharam aquelas camas se afinal eram necessárias? Por que razão ainda recentemente decidiram, no hospital Pulido Valente, encerrar serviços de medicina e respetivos internamentos se a capacidade de resposta do centro hospitalar já não é suficiente?

Este é um exemplo do que se fez ao Serviço Nacional de Saúde a mando da Lei de Bases do PSD e do CDS. Nos últimos quase 30 anos a ordem tem sido para transferir respostas para os privados, para criar um mercado onde os grupos económicos atuam de forma segura, contando sempre com o orçamento do SNS para pagar a sua ‘livre iniciativa’ e o seu ‘mercado livre’.

Reitera-se o que já aqui se disse: a Lei de Bases da Saúde de 1990 tem de ser revogada, não por mera desatualização, mas porque ela inseriu um viés ideológico que atenta deliberadamente contra o SNS e contra o Estado como prestador de cuidados. O Serviço Nacional de Saúde só poderá reconstruir-se definitivamente quando a lei não o obrigar a destruir a sua capacidade de resposta e a transferir o seu orçamento para quem quer fazer da saúde um negócio.

Moisés Ferreira
Sobre o/a autor(a)

Moisés Ferreira

Dirigente do Bloco de Esquerda. Psicólogo
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