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Argélia: Não é senão o início

Seis semanas de mobilizações de milhões em toda a Argélia dividiram o poder e levaram à demissão do Presidente Abdelaziz Bouteflika. Neste artigo, Hocine Belalloufi analisa os meandros do processo que abala o país e abre o debate estratégico sobre as suas perspetivas.
No cartaz lê-se: "Testei este regime e não emagreci, então mudo de regime"
No cartaz lê-se: "Testei este regime e não emagreci, então mudo de regime"

À memória do camarada Achour Idir.

Infatigável militante sindical e político cujo coração ardente mas fatigado cedeu na noite de 3 para 4 de abril de 20191.

A mobilização do povo argelino finalmente compensou. Um mês e meio depois da irrupção das massas populares na cena política, a 22 de fevereiro de 2019, Abdelaziz Bouteflika demitiu-se a 2 de abril. Acabou por não terminar o mandato e saiu pela pequena porta da História. As manifestações de toda a população a cada sexta-feira e as dos trabalhadores, estudantes, advogados, magistrados, arquitetos, médicos, reformados… durante semanas, assim como as greves locais e as greves setoriais derrotaram a vontade do clã presidencial de se manter.

Hocine Belalloufi, jornalista e militante do PST baseado em Argel, analisa os meandros desta mobilização e abre o debate estratégico sobre as suas perspetivas. Antigo coordenador da redação de Alger républicain de 2003 a 2008, é autor de duas obras: La démocratie en Algérie. Réforme ou révolution? (Apic et Lazhari-Labter, Argel, 2012) e Grand Moyen Orient: guerres ou paix? (Lazhari-Labter, Argel, 2008).

A demissão de Bouteflika é uma imensa vitória política, conquistada apesar de uma manobra de última hora do presidente demissionário que, em troca da sua renúncia a candidatar-se a um quinto mandato, procurava até então pilotar uma transição controlada com o fim de assegurar a perpetuação do regime autoritário-liberal de fachada democrática instalado há três décadas. Com efeito, na sua carta de 11 de março ao povo argelino, Bouteflika, reconhecendo o fracasso da tentativa de forçar um quinto mandato:

– renunciou formal e oficialmente a se apresentar às eleições presidenciais,

– anulou, em violação da sua própria legalidade, o escrutínio presidencial de 18 de abril e anunciou a abertura de uma transição não limitada no tempo, na conclusão do seu quarto mandato,

– manter-se-ia ilegalmente no seu posto até o fim da transição anunciada,

– despediu o primeiro-ministro Ahmed Ouyahia e encarregou o ministro do Interior Noureddine Bedoui de formar um novo governo, aberto, inclusive, à oposição,

– anunciou a intenção de convocar para breve uma Conferência nacional inclusiva, composta de representantes do poder e da oposição, das “elites” e outras “personalidades independentes” da “sociedade civil”.

O antigo diplomata argelino e da ONU Lakhdar Brahimi foi chamado para pilotar de maneira informal a preparação desta Conferência nacional.

Manifestação de 22 de março provocou divisões no poder. Foto de Hamlaoui Chouaib.

A manobra foi rejeitada pelos argelinos que multiplicaram durante toda a semana as marchas, os sit-in, as greves… que culminaram nas imensas manifestações das sextas-feiras 15 e 22 de março. Esta mobilização exacerbou as dissensões no seio do poder. O vice-primeiro-ministro e chefe do Estado Maior do Exército, Ahmed Gaïd Salah, que fora um dos apoios mais determinados do presidente, deixou de evocar o seu nome nos discursos e insistia nas ligações privilegiadas unindo o povo e o ANP (sigla de Armée Nationale Populaire, Exército Nacional Popular). Nos dois principais partidos da coligação, o RND (Reagrupamento Nacional Democrático) e a FLN (Frente de Libertação Nacional), ocorreram demissões individuais e coletivas e pedidos de afastamento dos seus dirigentes respetivos, Ahmed Ouyahia e Moad Bouchareb.

Apesar destas dificuldades, na véspera da manifestação da sexta 22 de março, o poder persistia na vontade de aplicar o cenário presidencial de 11 de março.

A determinação popular acabou por provocar a explosão das contradições no seio do poder. 

A determinação popular acabou por provocar a explosão das contradições no seio do poder. Apesar do mau tempo, homens e mulheres de todas as condições sociais, jovens e velhos, e mesmo crianças, saíram massivamente à rua no 22 de março para reiterar com força a sua recusa das propostas de saída de crise avançadas por Bouteflika e manter a sua exigência de fim do regime.

Esta determinação afetou duramente a coesão interna do regime. Num momento em que o novo governo tardava a nascer, já que os candidatos a ministros não se acumulavam na porta, as fileiras do RND e da FLN desagregaram-se. Muitos militantes e parlamentares, e mesmo os dirigentes mais odiados, instados pelos seus secretários-gerais respetivos, Ahmed Ouyahia e Moad Bouchareb, aderiram sem vergonha ao movimento. O secretário-geral da UGTA (União Geral dos Trabalhadores Argelinos) não tardou a se alinhar… Os mais oportunistas que sustentavam o presidente até àquele momento pediram publicamente a sua saída no final do quarto mandato.

Até tu, Brutus!”

Finalmente, no dia 26 de março, o homem forte do poder, Ahmed Gaïd Salah, juntou-se a eles para defender que a única solução era a aplicação do artigo 102 da Constituição2 que prevê a demissão do Presidente da República ou a sua destituição por estado de impedimento ou por falecimento. A manifestação de sexta 29 que punha no mesmo saco os diferentes clãs do poder empurrou Gaïd Salah a acentuar a pressão sobre Bouteflika para que ele se demitisse.

O general Gaïd Salah. Foto By U.S. Navy photo by Chief Photographer's Mate Johnny Bivera - http://www.navy.mil/view_image.asp?id=33854 US Navy, Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=28302416
O general Gaïd Salah. Foto By U.S. Navy photo by Chief Photographer's Mate Johnny Bivera - http://www.navy.mil/view_image.asp?id=33854 US Navy, Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=28302416

Hoje, o chefe do Estado Maior apresenta-se como braço armado, já não do presidente que ele apunhalou, mas do movimento popular do qual ele seria defensor. Finge descobrir a corrupção endémica que gangrena o país. Procura assim recolher os frutos da demissão de Bouteflika.

Ora, até o 26 de março, a saída do chefe de Estado não figurava nem na sua agenda pessoal nem na de Ahmed Gaïd Salah nem na de nenhum dirigente. Todos pretendiam impor a opção Bouteflika. Primeiro como candidato a um quinto mandato, depois como piloto de uma transição controlada. Os milhões de manifestantes das sextas-feiras acabaram por dissuadi-los. Esta vitória é assim a do povo que desafiou os interditos do poder manifestando-se todos os dias nos quatro cantos do país sem pedir autorização administrativa nem mesmo registar as manifestações.

Nova manobra do regime

A alegria e o orgulho de ter forçado Bouteflika a abdicar não devem no entanto mascarar o facto de que o regime autoritário-liberal de fachada democrática permanece de pé. O povo argelino ainda não recuperou, nem de perto, a sua soberania.

A “solução constitucional” do chefe do Estado Maior constitui uma nova manobra política de cosmética do regime. Ela sacrifica o presidente com o objetivo de fazer abortar qualquer perspetiva de transição democrática e de mudança de Constituição. O artigo 102 implica na manutenção da atual Constituição, do governo, do Conselho Constitucional, das duas câmaras do Parlamento e de todas as instituições do regime autoritário… Alguns direitos já são concedidos, provisoriamente, em matéria de criação de associações, de sindicatos e de partidos, mas o poder poderia manter-se como fez depois de outubro de 19883, porque é ele que terá a responsabilidade de organizar as futuras eleições presidenciais, as quais ninguém pode duvidar de que serão ganhas pelo candidato do regime.

Uma tal situação representaria mesmo uma regressão em relação à manobra de Bouteflika de 11 de março, na medida em que excluiria até a fantoche Conferência nacional inclusiva… Com o artigo 102, passaríamos da transição de Bouteflika, controlada e pilotada pelo poder, a uma ausência de transição. Tratar-se-ia fundamentalmente de um regresso ao 21 de fevereiro! É por isso que numerosos manifestantes avançaram a palavra de ordem de aplicação dos artigos 7 a 12, que restituem ao povo a sua soberania plena e inteira, em vez do artigo 102.

Abertura do 2º ato da luta

Tudo indica que o movimento popular não conhecerá o decréscimo desejado pelo número 2 do RND, Chihab Seddik. Hoje, 5 de abril4 as mobilizações devem rejeitar de novo massivamente a opção da manutenção do regime que representa a aplicação do artigo 102.

As manifestações espontâneas que se sucedem desde 31 de março em todo o país (estudantes, advogados, reformados…), o apelo da Confederação dos sindicatos autónomos (CSA) a uma greve geral em 10 de abril, greve apoiada pelos juízes e os funcionários do setor da Justiça, e as marchas noturnas que se seguiram ao anúncio da demissão do presidente a 2 de abril provam que o movimento popular exige uma mudança completa e não cai no conto que torna Bouteflika um bode expiatório de todo o regime.

A demissão do presidente fez aparecer na frente da cena o poder real, o núcleo duro do regime. 

A demissão do presidente fez aparecer na frente da cena o poder real, o núcleo duro do regime. Este poder real não é o do ANP. O Exército Nacional Popular é constituído de djounoud (soldados), suboficiais e oficiais. Mas o poder real é o da muito alta hierarquia militar que constitui o braço armado do regime. De 1962 até hoje, ela não deixou de fazer e desfazer os presidentes e sustenta, desde 1980, uma política liberal antinacional, antissocial e antidemocrática.

Foi este braço armado que manteve e perpetuou o reinado de Bouteflika durante 20 longos anos e isto em violação da sua própria Constituição imposta à força ao povo argelino. E agora que este último está a combater para arrancar a sua cidadania, eles queriam que ele se reconhecesse nesta Constituição que o manteve num estado de subordinação política.

O poder constituinte pertence ao povo”

Ao tentar desviar a mobilização popular por um artifício jurídico (o artigo 102), com o objetivo de salvar um regime autoritário corrompido, o núcleo duro assumiu a pesada responsabilidade e o risco de colocar face a face o povo e o exército e de pôr assim em perigo o Estado argelino face aos apetites do imperialismo (G7, Nato, Israel…), da reação regional (monarquias árabes, Turquia…) e dos seus agentes internos.

O movimento popular não se enganou. Não se virou contra o ANP cuja função consiste em defender o povo, as suas conquistas e o seu bem-estar social, a soberania nacional sobre as suas riquezas, as suas fronteiras e a sua soberania política. Milhões gritaram: “Djeich-chaab, khawa khawa” (o exército e o povo são irmãos). Fizeram o mesmo com os elementos da polícia que se abstiveram de afrontar durante as manifestações.

"Fora o sistema!" é uma das principais palavras de ordem do movimento
"Fora o sistema!" é uma das principais palavras de ordem do movimento

Mas opõe-se, em contrapartida, ao projeto da muito alta hierarquia de manter o regime. O recurso aos artigos 7 a 12 da atual Constituição pode constituir uma janela que desemboque na expressão livre de uma soberania popular há muito tempo sonegada. A solução para a presente crise, porém, não pode ser senão política, não constitucional. Ela implica em instalar um governo provisório encarregado de defender a soberania nacional, de satisfazer as reivindicações populares e de organizar um vasto debate em todo o país coroado pela eleição de uma Assembleia Constituinte soberana.

Dois projetos antidemocráticos

Três projetos emergem hoje, dos quais apenas um corresponde aos interesses populares.

O primeiro, defendido pelo poder, entende manter a iníqua ordem constitucional em vigor.

O segundo é o de uma transição curta, feita por cima, que manteria ou rearranjaria alguns aspetos da atual Constituição. É o projeto da oposição ultraliberal, todas as tendências confundidas (laicos, nacionalistas, islamistas). Exprime os interesses da fração “compradora” da burguesia.

Sob o pretexto da urgência, visa a eleição de um presidente que teria, enfim, a “legitimidade” de impor ao povo os “sacrifícios necessários à sua felicidade”: fim das subvenções aos preços dos produtos de primeira necessidade, da eletricidade, da água, do gás, da gasolina… e o fim também das conquistas em matéria de saúde, de educação. Transformação do Código do Trabalho em Código do Capital, ampliação da idade da reforma, congelamento dos salários, entrave aos direitos de greve e de organização sindical. Abertura da economia da Argélia à economia capitalista mundial pelo regresso ao endividamento externo, a convertibilidade do dinar, o fim das barreiras aduaneiras…

A insistência da corrente ultraliberal de pôr a UGTA no museu é tão reveladora como suspeita. Enquanto os sindicalistas e os trabalhadores conscientes se batem por se reapropriar desta organização caída sob o peso de uma burocracia anti-operária, os ultraliberais querem dissolver esta ferramenta estratégica de defesa dos interesses dos trabalhadores. Uma ferramenta estratégica na perspetiva de uma alternativa nacional (anti-imperialista), democrática (antiautoritária) e social (antiliberal).

Uma Assembleia Constituinte para que a palavra regresse ao povo

O terceiro projeto é levado, com nuances, pelos partidos, movimentos e personalidades que defendem a eleição de uma Assembleia Constituinte. O povo, e só ele, deve escolher sob qual tipo de regime entende viver: parlamentar, presidencial, ou outro.

Cabe-lhe decidir se quer manter a monárquica função presidencial, ou se prefere que o Parlamento, eleito por proporcionalidade integral, eleja um governo que o presida. Se quer ou não um Senado encarregado de controlar e de contrariar a vontade da Assembleia Popular Nacional, se prefere eleger representantes para um ou mais mandatos. Se entende introduzir um direito de revogação de todo o eleito que trair o seu mandato, respeitar ou não a independência da Justiça, controlar ou não o governo. Se deve introduzir, ao lado da velha democracia representativa empoeirada, formas de democracia direta: comités de bairro e de cidade, de empresa, de instituições escolares.

No clima de politização de massas atual, a ideia de Constituinte está a fazer o seu caminho nas consciências, contra a opinião do poder e da oposição ultraliberal.

No clima de politização de massas atual, a ideia de Constituinte está a fazer o seu caminho nas consciências, contra a opinião do poder e da oposição ultraliberal. Os adversários do regresso à velha soberania do povo avançam argumentos miseráveis.

O primeiro é o do “vazio constitucional”. Dramatizam as coisas de propósito, com vista a atemorizar a população. Atenção, previnem-nos, as instituições desmoronarão se saímos do quadro da atual constituição. Esquecem que, de 1962 a 1976, a Argélia viveu sem Constituição. Isso não impediu o Estado de funcionar, de elevar o país entre os principais líderes do Não-alinhamento, de recuperar as riquezas naturais do solo e do subsolo, de melhorar a condição das massas populares em matéria de educação, de saúde e de trabalho, de lançar as bases de uma indústria diante da qual a miserável economia de bazar atual pouco pesa… O povo mobilizado está em condições de se dotar de um quadro transitório para ir em direção a uma Constituinte encarregada de elaborar uma nova arquitetura constitucional.

O segundo argumento é o da “urgência”. Ora a passagem de um regime ditatorial ou autoritário a um regime democrático não pode ocorrer num piscar de olhos. Assegurar a participação real e massiva do povo demonstra-se fundamental se queremos dar bases sólidas ao futuro regime democrático.

Enfim, o terceiro reside num “perigo islamista” totalmente exagerado e que banaliza a vitória do povo argelino sobre o islamismo armado. Esta posição ignora a evolução de uma sociedade profundamente impregnada de cultura religiosa mas absolutamente não ganha para o projeto teocrático, como provam as palavras de ordem gritadas nas manifestações, a presença mais que massiva das mulheres no movimento e o uso generalizado do emblema nacional que significa que a identidade argelina é política e não cultural (religiosa, linguística…). O islamismo deve continuar a ser combatido politicamente e não pela instauração de um regime censitário ou de uma nova democracia de fachada.

As condições de instauração de um regime democrático amadurecem inegavelmente, mesmo se o caminho está cheio de emboscadas. Abster-se de lutar sob o pretexto de uma ausência de garantias equivale a preconizar a manutenção do status quo.

Que perspetivas estratégicas?

Desestabilizado momentaneamente pelo surgimento repentino e a amplitude do movimento popular, o poder, por intermédio do chefe do Estado Maior, entendeu retomar o controlo forçando o Conselho Constitucional a desencadear a aplicação do artigo 102 que apresenta como a resposta adequada às reivindicações populares, fingindo ignorar que o regime liberal autoritário do qual ele faz parte não terminou com a saída de Bouteflika.

Momento em que Bouteflika entrega a sua demissão ao presidente do Conselho Constitucional.
Momento em que Bouteflika entrega a sua demissão ao presidente do Conselho Constitucional.

Mas não é assim que o povo vê. As manifestações populares de alegria que imediatamente se seguiram ao anúncio da demissão do presidente claramente indicaram que o povo não se contentaria com uma meia vitória. O poder encontra-se assim diretamente confrontado com a contestação das massas e deverá escolher entre um golpe de Estado ou recuar mais até abdicar face à vontade popular.

Para atingir os seus fins, o movimento popular deve redobrar os seus esforços e a sua mobilização. Mas para produzir os seus plenos efeitos, estes esforços e mobilização deverão ser integrados a uma tática justa que repousa numa apreciação objetiva da relação de forças entre os campos em presença e da sua evolução e numa clara consciência dos riscos políticos reais que daí decorrem.

Uma situação revolucionária?

Apesar das aparências, não estamos numa situação revolucionária mesmo se o momento possui incontestavelmente potencialidades neste sentido. As coisas poderiam evidentemente mudar, mas na hora em que estas linhas são escritas, ainda não chegamos lá.

Caracterizada por uma dualidade de poderes na qual os de baixo já não querem e os de cima já não podem, uma situação revolucionária conduz fatalmente, num dado momento, a um afrontamento direto entre o antigo poder que está a terminar e o novo que nasce, o que implica fazer uma revolução no curso da qual o novo poder deve derrubar o antigo e tomar o seu lugar. Numa tal conjuntura, os revolucionários e os setores mais determinados do movimento popular devem tomar a ofensiva para tomar o poder.

Ora, consciente da sua força mas igualmente dos seus limites, o movimento popular não tem, até agora, optado pela tática do búfalo que carrega sobre o seu alvo para o derrubar com uma marrada, mas pela da jibóia que envolve a sua presa e aperta lentamente os seus anéis sobre ela.

Os argelinos manifestam-se, reivindicam e reúnem-se durante a semana assim como nas sextas-feiras. Os trabalhadores e as trabalhadoras e os estudantes usam frequentemente o recurso da greve. Mas não ocupam os lugares de forma permanente e não aderem à palavra de ordem de desobediência civil, como fez a FIS em 1991 quando da greve insurrecional. Não procuram o afrontamento direto com a polícia, mas pelo contrário evitam-no cuidadosamente. Não marcham sobre a Presidência em Argel ou sobre as sedes das wilayas (províncias) para as tomar. Não criaram até hoje comités populares que viessem superar as estruturas oficiais de base do Estado (câmaras) como aconteceu na Cabília em 2001.

Ocupam as ruas todas as sextas-feiras para manifestar a sua força, indicar a porta de saída aos detentores do regime, exercer pressões sobre este último para exacerbar as contradições e fazer compreender aos dirigentes que devem todos ir-se embora. Depois voltam para casa, regressam ao trabalho e às suas ocupações à espera de medir o efeito político real da sua ação sobre o poder e preparar-se para os próximos rounds. Os milhões de argelinos e argelinas que se manifestaram até agora estão numa dinâmica de pressão sobre o poder e não do seu derrube. Isso pode vir a mudar no futuro, mas não é o caso por enquanto.

O poder, por seu lado, não pode tudo. De 22 de fevereiro a 2 de abril, data da demissão de Bouteflika, estava na defensiva. Mas não é totalmente impotente e tenta retomar a iniciativa política através da aplicação do artigo 102 para fazer o caudal da contestação popular reentrar no seu leito. Dispõe, além disso, de forças (exército, gendarmes, polícia) e nada indica que ele seja incapaz de utilizá-los em caso de necessidade. Os polícias, gendarmes e militares não confraternizaram com o povo. Se não reprimiram os manifestantes, foi porque não receberam ordens para isso e não por terem já passado para o lado do movimento popular.

Todos estes elementos objetivos levam a concluir que nos mantemos numa situação pré-revolucionária caracterizada pelo facto de os de baixo já não querem, mas o de cima, apesar de enfraquecidos, poderem ainda.

Todos estes elementos objetivos levam a concluir que nos mantemos numa situação pré-revolucionária caracterizada pelo facto de os de baixo já não querem, mas o de cima, apesar de enfraquecidos, poderem ainda. O movimento popular pode assim definir-se como um movimento radical de reformas. Reformas, na medida em que procura mudar o regime exercendo sobre ele uma pressão sem procurar derrubá-lo através de um confronto direto. Radical, porque não se contentará com modificações cosméticas e agiu sem fraquezas e por vias extra-institucionais para atingir o seu objetivo.

A questão política do momento

Em tais condições, qual é a questão política principal do momento? Esta questão reside na capacidade do poder de impor a sua solução de cosmética do regime. O movimento deve, pelo contrário, impedi-lo de atingir este fim.

Até onde pode chegar o movimento popular atual? Esta é a questão que se nos coloca. Este movimento tem pontos fortes. É massivo, nacional, aglutinador (interclassista, intergeracional, misto, todas as correntes de oposição…). Provou a sua determinação durante seis semanas e obteve resultados políticos importantes, dos quais a demissão de Bouteflika. Fez saltar a chapa de chumbo que pesava sobre a vida política do país e abriu assim a via para uma dinâmica de expressão (manifestações, greves…) e de auto-organização de massas. Dispõe de potencialidades ainda inexploradas no seio da classe operária e do campesinato.

Mas é atravessado por contradições secundárias (sociais, políticas, ideológicas) que podem a qualquer momento tornarem-se principais e dividi-lo ou mesmo fazê-lo explodir. Podemos medir este risco observando o conteúdo das reações às agressões cometidas contra os grupos feministas quando da manifestação de 29 de março em Argel. Porque se o movimento é unido para acabar com o regime, não o é em relação à tática a seguir para o atingir. Também não está unido em torno da perspetiva: qual alternativa? Substituir o atual regime por qual outro?

Estas questões não são abordadas. A ausência de organização interna e a recusa, compreensível num primeiro momento, da presença no seu seio das forças políticas, corre o forte risco de impedir o movimento de se dotar de uma tática eficaz. Por todas estas razões, ele nprecisa de tempo.

Por um movimento popular prolongado

É por isso que, tendo em conta as forças e as fraquezas do movimento, convém inscrevê-lo no longo prazo e não procurar uma saída política imediata. A mobilização popular tem necessidade de tempo para se estender ainda mais, se organizar na base, dotar-se de uma direção – compreendida, em primeiro lugar, como uma orientação consequente e não uma improvável estrutura dirigente. Isso não se faz num dia.

Convém, além disso, combinar de maneira refletida e ativa, e não inconsciente e passiva, uma estratégia que combine “guerra de movimento” e “guerra de posição”. A “guerra de movimento” toma principalmente a forma das grandes manifestações de sexta-feira que devem reforçar-se ou, pelo menos, manter-se ao nível da mobilização atual e continuar o mais unidas possível. Ela deve igualmente tomar a forma de greves sectoriais e/ou gerais, à semelhança daquela convocada pela Confederação dos Sindicatos Autónomos (CSA) no próximo dia 10 de abril. Esta “guerra de movimento” tem por objetivo exercer uma pressão crescente sobre o poder atual a fim de exacerbar as suas contradições, de isolar os seus partidários mais repressivos e de forçá-lo, finalmente, a recuar e a aceder às reivindicações do movimento.

A “guerra de posição” visa, quanto a ela, assenhorear-se das praças fortes. O acesso às médias públicas e o gozo efetivo das liberdades de expressão, de manifestação, de reunião e de organização associativa, sindical e política e do direito de greve… constituem praças fortes a conquistar ou reconquistar, alargar e defender. Isto começou a ser feito por intermédio de manifestações e de greves locais. A reapropriação da UGTA pelos trabalhadores e pelos sindicalistas representa uma outra posição estratégica a investir. O processo está em curso, mas ainda não atingiu uma dimensão suficiente para fazer cair a direção burocrática da central. Ela deve ser acompanhada pela construção de uma Frente sindical com os sindicatos autónomos para trabalhar na reconstrução da unidade do campo dos trabalhadores.

Convém, como começou a ser feito, reconstruir um movimento estudantil autónomo e democrático assim como um movimento de mulheres, na espera de efetuar uma incursão no mundo camponês. Um dos objetivos podia consistir em trabalhar a reintegração no seio da UGTA da antiga Federação nacional dos trabalhadores agrícolas que foi arbitraria e autoritariamente transferida para a União Nacional dos camponeses argelinos (UNPA).

Outra tarefa consiste em apoiar, reforçar e alargar o campo das associações, sindicatos e movimentos que se definem como “sociedade civil” e ganhá-los para a perspetiva da Assembleia Constituinte.

Pode igualmente acontecer que se desenvolva um processo de auto-organização nos bairros, nas cidades e que emerjam comités populares. Mas ninguém pode decretá-lo. Convém, todavia, ficar atento a esta eventualidade que poderia realizar-se a um certo nível de desenvolvimento do movimento.

Construir uma direção política consequente

Face ao poder e diante das inconsequências e traições inevitáveis das forças de oposição ultraliberal, convém construir uma direção política, quer dizer uma orientação política capaz de dotar o movimento dos meios para realizar as suas ambições e de conhecer um desenvolvimento qualitativo.

Esta direção não poderá ser levada senão por um pólo dos partidários da Assembleia Constituinte. A luta política, distinta da luta ideológica, visa antes de tudo juntar força à força e executá-la de forma a pesar sobre a relação de forças e vencer a partida, total ou parcialmente. Ela não exige que as forças que se agregam possuam a mesma ideologia, defendam o mesmo programa histórico nem mesmo que tenham acordo até à vírgula em relação à sua definição de Assembleia Constituinte. Ela exige simplesmente que estas forças tenham acordo para, num dado momento, agir conjuntamente.

Face ao poder e às forças ultraliberais, a formação de um tal pólo é uma tarefa urgente. O movimento não poderá, com efeito, avançar e efetuar um salto qualitativo se não passar de uma posição legítima de recusa a uma posição de proposta e de construção de uma alternativa política. Ora, a única palavra de ordem que permite ao povo encontrar a sua plena e inteira soberania é a de Assembleia Constituinte soberana. A formação deste pólo é possível porque partidos defendem esta mesma palavra de ordem que começa a ganhar terreno na consciência popular. O PT, a FFS e o PST estão assim postos diante uma responsabilidade histórica. Não se deve em caso algum opor o trabalho de construção/reconstrução do movimento popular, na base, à ação conjunta das forças políticas na cúpula. Coletivos por uma Assembleia Constituinte soberana poderiam assim ser construídos conjuntamente, na base, pelos militantes destes diferentes partidos e por todos os que partilham desta ideia sem ser militantes de um partido. Convém mais que nunca agir em conjunto, mesmo se cada um marcha separadamente.

Argel, 5 de abril de 2019.

Publicado em Contretemps.

Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net

1Achour Idir era secretário-geral do Conselho dos Liceus da Argélia (CLA), sindicato nacional autónomo dos professores. Era também membro dirigente do Partido Socialista dos Trabalhadores. Faleceu aos 50 anos, devido a uma crise cardíaca. “Era um homem corajoso, um militante político e sindical infatigável”, descreveu o PST em nota oficial. “Era de todos os combates por um mundo melhor” (Nota do tradutor).

2Ver Constitution de la République Algérienne Démocratique et Populaire (RADP).

3Refere-se às sublevações ocorridas em Argel e cidades como Annaba, Oran, Constantine, Tizi Ouzou, Béjaia, protagonizadas por jovens que ocupam edifícios públicos, como esquadras de polícia, sedes municipais e departamentais da FLN, ou as instalações dos ministérios da Juventude e Desportos, da Educação e dos Transportes. A intervenção do exército controlou a situação. Ver mais aqui (Nota do tradutor).

4Este artigo foi concluído antes do início das manifestações de dia 5 de abril (Nota do autor).

(...)

Neste dossier:

"Fora o sistema" é o lema das mobilizações

Argélia em revolução contra o "sistema"

A Argélia vive, desde 22 de fevereiro, as maiores mobilizações da sua história recente. Milhões de pessoas, todas as sextas-feiras, manifestam coletivamente a sua vontade que se pode resumir numa palavra de ordem: “Fora o sistema”. Já conseguiram a demissão do presidente. Dossier organizado por Luis Leiria.

A palavra de ordem de uma Assembleia Constituinte soberana a via a uma mudança radical e realmente democrática do “sistema”.

Argélia: A democracia, a Constituição e o desafio da transição

Nas forças que querem o fim do sistema, há os que pedem um governo de transição encarregado de organizar a eleição de um novo presidente, o qual desencadearia reformas. Mas há também os que reivindicam um processo constituinte para uma verdadeira rutura democrática e uma nova estrutura de poder. Por Nadir Djermoune.

No cartaz lê-se: "Testei este regime e não emagreci, então mudo de regime"

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"Pela centésima segunda vez: Fora!". Cartaz faz alusão ao artigo 102 da Constituição argelina. Foto de Nesrine Kheddache

O exército e a dinâmica do levantamento popular “antissistema”

Qual será o papel do Exército argelino, que forma a coluna vertebral do país, na transição política? Semelhante ao do exército do Egito? Ou ao de Portugal no 25 de Abril? Por Nadir Djermoune.

 

Para o PST, a hora é de auto-organização das massas populares argelinas

Por uma assembleia constituinte soberana, o combate continua!

O Partido Socialista dos Trabalhadores é um dos partidos da esquerda argelina, fundado nos anos 70 do encontro de um grupo de sindicalistas do leste do país e de um círculo de estudantes da Universidade de Argel. Reproduzimos aqui o comunicado publicado pela sua direção após a queda de Bouteflika.

Louisa Hanoune, secretária-geral do PT

Maioria do povo disse: “vão-se embora sem exceção”

Reação do Partido dos Trabalhadores (PT) da Argélia à demissão de Bouteflika.

A construção do futuro comum não pode ser feita sem uma igualdade plena e inteira entre as cidadãs e os cidadãos, sem distinção de género, de classe, de região ou de crenças. Foto de Fototeca do NPA.

Mulheres argelinas: “Reafirmamos a nossa determinação de mudar o sistema existente”

Vivemos atualmente uma magnífica sublevação popular pacífica contra o sistema político existente. A presença massiva de mulheres nas manifestações testemunha as profundas transformações da nossa sociedade e exige um reconhecimento dos direitos das mulheres numa Argélia igualitária.

Mulheres argelinas na manifestação de 8 de março em Argel. Imagem do vídeo de Drifa

Uma adesão feminina muito forte

Muitas mulheres tomaram consciência da utilidade de se organizarem em coletivos para reivindicar os seus direitos e exigir o fim do sistema existente ao lado dos seus compatriotas, como era o caso durante a guerra de libertação nacional, explica a militante feminista Titi Haddad. Entrevista de Antoine Larrache.

Poço de petróleo na Argélia. Foto de By aka4ajax, CC BY 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=57761438

Uma economia agonizante?

“A Argélia é uma economia agonizante. A tal ponto que a pergunta não é se vai quebrar ou não, mas sim quando”, escreve o Xerfi (instituto de estudos privado, especializado na análise económica sectorial em França e a nível internacional). Em 2014 especialistas tentaram reformar uma economia baseada no petróleo. Antes que o regime enterrasse as propostas que ele mesmo tinha encomendado. Por Amélie Perrot.

Sede da petrolífera Sonatrach em Oran, Argélia

Portugal importa 50% do seu gás natural da Argélia

País tem uma economia totalmente dominada pela produção e exportação de combustíveis fósseis. Petrolífera argelina é acionista da EDP.

Mobilização em Argel

Cronologia: da candidatura ao 5º mandato à demissão de Bouteflika

No dia 2 de fevereiro era anunciada a candidatura de Bouteflika ao seu 5º mandato. No dia 2 de abril, demitiu-se ainda antes de terminar o 4º. De uma data à outra, ocorreram as maiores manifestações de massas da história recente da Argélia. Que prosseguem, porque nem a demissão as acalmou.