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Cidade ou mercado?

Proteger as pessoas passa hoje por decisões ao alcance das autarquias. No Porto, Rui Moreira continua a deixar entregues ao mercado os desígnios de vida das pessoas.

“Enquanto nós vamos ali comprar o jornal, o terreno desaparece, e em seu lugar surge o imóvel. Houve um tempo em que esta cidade cresceu devagar. Hoje, a cidade cresce tão rapidamente que deixa para trás, sem remédio, as infâncias. Os paraísos vão-se afastando cada vez mais. Adeus, fraternidade. Cada um por si.”
(adaptado de José Saramago, in ‘A Bagagem do Viajante')

Em Julho de 2018, em reunião extraordinária da Assembleia Municipal do Porto convocada pelo Bloco de Esquerda, Rui Moreira dizia, já depois das gargalhadas dos deputados do seu grupo municipal ao ouvirem as palavras “bullying imobiliário”, que entendia não ser aquele o lugar para a discussão. Caberia à Assembleia da República actuar contra a sangria dos despejos e a especulação imobiliária criada pela Lei Cristas.

Decorreram nove meses. Foi aprovada legislação que permite ao executivo camarário actuar em prol da protecção das pessoas e do direito à habitação e Rui Moreira nada fez. Depois do “falta legislar”, vieram o “estudemos primeiro”, o “número de dormidas em Alojamento Local (AL) estabilizou no Porto”, “anunciar a suspensão do licenciamento de AL resultaria numa corrida às licenças”, ou “a haver crime [em situações de assédio imobiliário] é caso de polícia, não é papel da Câmara intervir”. Desculpas que se traduzem em inacção, enquanto as pessoas desesperam.

O Porto está entregue ao mercado que expulsa moradores, negligencia serviços públicos e atormenta quem ainda consegue manter a sua casa. Proteger as pessoas passa hoje por decisões ao alcance das autarquias. Primeiro, a criação de um gabinete de emergência social, que apoie as pessoas e preste aconselhamento jurídico a quem enfrenta situações diárias de assédio e ameaça. Segundo, a suspensão de novas licenças de Alojamento Local na cidade durante um ano. Esta suspensão permitiria à autarquia transpor para o regulamento municipal as novas regras legais (que incluem a fiscalização) e levar à Assembleia Municipal a criação de “zonas de contenção”, onde o Alojamento Local capturou já uma parte significativa das habitações (ao contrário do que diz Rui Moreira, o que estabilizou foi o ritmo do aumento, mas o número de novas licenças continua a crescer). Terceiro, mobilizar a cidade contra o abuso. Não é já tempo de Rui Moreira falar com as moradoras da Vitória e estar presente contra a violência dos despejos em Miragaia?

A informação necessária para deliberar e actuar já existe, tanto por via dos números resultantes da aplicação da taxa turística, como através dos dados já existentes no Registo Nacional do Alojamento Local, por exemplo. Aliás, depois de Lisboa e outros municípios do país, agora também Vila Nova de Gaia está a tomar medidas. Fica por demais evidente que Rui Moreira, mesmo em face do agravamento da situação, continua a deixar entregues ao mercado os desígnios de vida das pessoas. Protege assim o negócio e os interesses de alguns, em detrimento do interesse da cidade. Mas, ainda nas palavras de Saramago, “é sina dos homens, ao que parece, contrariar as forças dispersivas que eles próprios põem em movimento ou dentro deles se insurgem. A cidade torna-se oca onde antes era o núcleo, na semente do que seria a sua continuidade. E então descobre-se que as terras estão no interior da cidade e que todas as descobertas e invenções são outra vez possíveis. E que os homens recomeçam a aprendizagem dos nomes das pessoas e dos lugares, falando do futuro e do que a todos importa. Para que nenhum deles morra em vão.”

Artigo publicado em publico.pt a 6 de abril de 2019

Sobre o/a autor(a)

Deputada municipal e dirigente concelhia do Bloco de Esquerda do Porto
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