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A avaliação de desempenho e o desempenho da avaliação

A “competitividade” é agora, no discurso de contexto empresarial, a “palavra-chave” de (quase) tudo.

E não só no contexto estritamente empresarial (que, em Portugal, até já tem suporte institucionali) mas também, ainda do ponto de vista económico (e, consequentemente, social e político), a nível globalii.

Aliás, a “competitividade” é até já referência para outras organizações que não empresas, quer para IPSS, quer mesmo, intra e inter, para serviços públicos.

Em coerência com a da “competitividade”, desenvolveu-se também, sob um ponto de vista profissional e gestionário, a apologia da meritocracia individual e, associada, a da avaliação individual de desempenho (AD).

Assim, neste contexto e sentido, a AD é, quase sem reservas, apresentada, imposta, aceite ou, até, reivindicada como algo que, para os empregadores, é um factor de “competitividade” (porque de produtividade) e, para os trabalhadores, como algo que, objectivo, vai conferir reconhecimento e justiça profissional ao mérito relativo do seu trabalho.

E não custa a reconhecer que, de facto, em qualquer organização empregadora (empresas, administração pública e outras organizações onde é realizado trabalho), a avaliação de desempenho, com adequadas condições de modelo, organização e aplicação, de um ponto de vista patronal (da organização), pode (como deve) ser um instrumento de (boa) gestão, de planeamento, e de desenvolvimento organizacional.

E para os trabalhadores, para além de um referencial de responsabilização, pode (como deve) ser um suporte de justiça profissional, de reconhecimento do (e no) trabalho, de motivação, de (re)qualificação. E, mesmo, repercutindo-se nas suas condições sociais de trabalho (na medida em que, sempre, “trabalhar é viver com os outros”iii), de coesão socio-organizacional.

Mas há riscos de degeneração da AD quanto a estas expectativas (de gestão) dos empregadores e (profissionais) dos trabalhadores.

Esses riscos advêm muito de uma concepção do trabalho cada vez mais individualizada e meramente quantitativaiv e, como causa e efeito disso, cada vez mais assente na competição (que, acentua-se, é o contrário de cooperação). Daqui decorrendo a generalização de uma concepção da avaliação de desempenho essencialmente (se não estritamente) individual.

Mas, o trabalho nunca é algo estritamente individual. Todo o trabalho é realizado numa permanente intersecção entre o trabalho individual e o trabalho colectivo, entre a função realizada pelo trabalhador e o contexto organizacional e social em que se insere, o qual, facilitador ou constrangedor, tão determinado como determinante é do trabalho de cada um e de todos.

Quem, continuadamente, observa de perto o que, na “penumbra” das organizações empregadoras, (realmente) se passa nos locais de trabalho, não lhe é difícil, em muitos destes, perceber sinais de que, do modelo, processo e prática da AD lá está instituída (se bem que para isso também possam contribuir outros factores, por exemplo, a precariedade das relações de emprego), muito resulta não apenas saírem goradas aquelas expectativas dos empregadores e trabalhadores atrás enunciadas mas, mesmo, ser justamente muito a AD que as impossibilita.

Individualização crescente do trabalho, competição desenfreada entre trabalhadores ao limite de degradação das relações pessoais e consequente deslealdade profissional, desaparecimento da entreajuda, secretismo e individualismo profissional, dificultação da socialização de conhecimentos, experiências, práticas e dificuldades (que poderia ser factor de potencial desenvolvimento organizacional pelo acréscimo de conhecimento colectivo), bloqueamento da participação e organização dos trabalhadores. Se não, muita vezes, directa ou indirectamente, factor de geração de situações de assédio moral.

Não surpreende pois que, directa ou indirectamente daí, se percebam nas organizações sentimentos de discriminação, de iniquidade, de desânimo, de desmotivação (logo, de desqualificação), de isolamento social, de falta de sentido do trabalho, de sofrimento. Inclusive de “sofrimento ético”v , induzido pelo constrangimento ético-profissional face ao dilema de fazerem o que (quanto / quando) “devem” (ou não) fazer tendo a AD como referência ou fazerem o que deve ser feito tendo como referência a deontologia, a ética profissional e o respeito pela missão da organização em que se inserem. Neste último aspecto, mormente, sendo a organização um serviço público como de saúde ou de educação, um serviço essencial como transportes ou comunicações ou, em geral, um serviço de interesse público, por exemplo, num órgão de comunicação social, o jornalismo.

Ou seja, o “sofrimento ético” implicado pela vivência do dilema de, para lhes verem o trabalho reconhecido (via AD e implicações desta), as pessoas terem que deixar de nesse trabalho se reconhecerem. E de, por aí, se realizarem, profissional, ética e deontologicamente.

Factor de agravamento destes riscos, é o facto de raramente serem reconhecidos

Quer pelos empregadores, em geral, pelo pressuposto de bondade (quase) incondicional da AD, do ponto de vista gestionário.

Quer pelos trabalhadores, porque, se a AD pode ser factor desses riscos, factor também em regra é da condição profissional (carreira, remunerações, recebimento de “prémios”, até segurança no emprego, serem ou não despedidosvi) deles próprios, trabalhadores. E também porque tais riscos, e mais ainda a sua associação (também) à AD, não são colectivamente debatidos nas organizações empregadoras, quer pela falta de organização dos trabalhadores, pela falta de condições organizacionais e de gestão de diálogo e de participação social. No que, aliás, pelo individualização do trabalho e competição entre trabalhadores que fomenta, a AD também é, afinal, determinante.

Daí que, em qualquer organização empregadora, a avaliação de desempenho, qualquer avaliação de desempenho, careça de ser ... (re)avaliada.

É que a bondade ou a perversidade da AD depende do modelo (por exemplo, se é individual ou colectiva, qual é a forma, tempo e nível de informação e participação dos avaliados, etc), do conteúdo (natureza, especificação, valoração e estruturação dos critérios e consequências profissionais e organizacionais da avaliação ) e, muito, da sua aplicação concreta.

Por exemplo, quanto ao modelo, há um grande potencial de discriminação e injustiça na inclusão (frequente) do critério “assiduidade” (inclui faltas por doença, parentalidade, trabalhador-estudante, assistência a familiares, luto, actividade sindical, greve, etc.?). Ou do critério “produtividade” (quais são os parâmetros do desempenho estabelecidos para considerar este “excelente”? Os do “fluxo tenso”, em que a “excelência” é o limite limite da capacidade física e ou mental do trabalhador, o seu esgotamento face à sua resistência física e mental, sempre singular e contingente?

Aliás, quanto a este último aspecto, não é descabido, bem pelo contrário, associar a avaliação individual de desempenho, porque factor (ainda que indirecto) de sobre-intensificação do trabalho do ponto de vista físico e ou mental, a situações de lesões músculo-esqueléticas, de burnout ou, mesmo, de automedicação com psicotrópicos de “ajuda” para atingir os parâmetros da AD. Se não, ainda que também indirectamente a acidentes de trabalho (e não raros indícios disso há em muitos dos respectivos inquéritos).

Depois, sob um ponto de vista mais patronal, se há que reconhecer que, em determinadas condições de modelo e aplicação, a AD pode ser (como já se admitiu que seja em muitas organizações) um instrumento de boa gestão e desenvolvimento organizacional (e, a partir daí, de “competitividade” sustentável), pode também ser nos locais de trabalho um factor de geração de sentimentos de injustiça, frustração e ressentimento profissional e pessoal: E, a partir daí, um factor de anuviamento do ambiente socio-laboral, de dificultação ou destruição da cooperação e coesão socio-organizacional, condição estrutural de produtividade e de qualidade da produção (bens ou serviços), logo da expectável “competitividade”.

Mas – e este é um aspecto que aqui se visa especialmente acentuar -, para além dos requisitos de modelo e conteúdo, a possibilidade de degeneração perversa da AD depende, e muito, como atrás se escreveu, de como e por quem é aplicada. Isto porque é nesta fase – a da sua aplicação concreta – em que, muitas vezes, a AD degenera de instrumento de justiça profissional e de boa gestão em perverso mero instrumento de controlo individual de dominação e de submissão dos trabalhadores, com prováveis nefastas consequências profissionais , humanas, sociais e, até, como já se especificou, organizacionais.

E este risco pode não ser assim tão perceptível (o que o torna ainda mais grave), porque não decorrendo tanto do sistema e processo formal da AD, demonstrados como “objectivos” (e, portanto, justos e gestionariamente profícuos), depende mais, sim, das condições subjectivas da aplicação da AD, condições subjectivas essas cuja eventual perversidade pode ser escamoteada, camuflada, pelo “manto diáfano” da demonstrada objectividade do sistema formal da AD, em si.

Sim, a justiça, equidade e proficuidade que se espera da AD podem ser (como muitas vezes são), na aplicação desta nos locais de trabalho, de facto subvertidas pela falta de isenção associada, por exemplo, a condicionalismos de relacionamento pessoal entre quem (hierarquicamente) aplica a AD e os trabalhadores avaliados.

Ou, então, a factores mais organizacionais, por exemplo, ao posicionamento destes como reclamantes dos seus direitos e da sua dignidade profissional e pessoal. Ou, ainda, à sua condição sindical ou política. Ou, até, o que não é raro, à sua posição crítica (ainda que objectivamente construtiva) quanto à organização, meios e gestão da empresa, serviço ou departamento em causa, posição que, muitas vezes, é tida por “desautorização” de quem, superior hierárquico, tem, afinal, posição determinante na aplicação da avaliação de desempenho ou pode, de algum modo, privilegiadamente influenciá-la.

Em síntese, para além de outras precauções que deve merecer o seu modelo, instituição, organização e processo formais, do ponto de vista (também) da sua aplicação e gestão, a avaliação de desempenho não pode ser dissociada do desempenho da avaliação.


Notas:

i Fórum para a Competitividade

ii O Fórum Económico Mundial publica anualmente um Relatório de Competitividade Global, com um ranking posicionando as economias mundiais (em 2018, de entre 140 países, Portugal foi posicionado em 34º lugar)

iii Christophe Dejours – Travail, Usure Mentale, 1993

iv O que se avalia do esforço solicitado pelo trabalho é, em geral, muito “apenas” a quantidade da duração e produção (bens ou serviços) deste, o que sonega a qualidade e natureza desse esforço e, mesmo, a natureza e qualidade desse trabalho.

v E coloca-se aqui muito a questão do “sofrimento ético”, algo a que tem sido dada muita atenção e desenvolvimento por, além de outros, Christophe Dejours, psiquiatra e médico do trabalho francês (veja-se, por exemplo, uma entrevista dada ao público em 1/2/2010 - https://www.publico.pt/2010/02/01/sociedade/noticia/um-suicidio-no-trabalho-e-uma-mensagem-brutal-1420732 -e, para além de outros, o seu livro (2015) “Le Choix – souffrir au travail n’est pas une fatalité”)

vi Para além de outras situações de ordem mais geral que, com a AD associada, podem ser consideradas como “justa causa” de despedimento previstas no Código do Trabalho (por exemplo, “reduções anormais da produtividade” ou “desinteresse repetido pelo cumprimento de obrigações ...), porque mais especificamente referenciada à AD, a de, desde 2014, ter passado a ser directamente determinante (como primeiro critério) na selecção dos trabalhadores a despedir em situações de despedimento por extinção de postos de trabalho a “pior avaliação de desempenho” (alínea a) do Nº 2 do Artigo 368º do Código do Trabalho na redacção dada pelo Artº 2º da Lei 27/2014 de 8 de Maio, que se mantém em vigor)

Sobre o/a autor(a)

Inspector do trabalho aposentado. Escreve com a grafia anterior ao “Acordo Ortográfico”
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