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Queremos os vossos filhos

Náusea e vergonha é o que sinto pela proposta do PP espanhol, na sua lei da maternidade, que lançou a suspeita de que os trâmites de expulsão das mulheres grávidas imigrantes sem papéis fossem adiados se elas dessem os seus filhos para adopção.

Há poucas imagens que me ficam presas à memória como se nunca tivesse saído desse episódio. Um delas é a da mulher síria que, em 2013, atravessava a fronteira em direcção ao Líbano. Eu estava aí com a Chefe de Delegação da União Europeia no Líbano, numa missão que procurava acautelar a resposta de emergência às três mil pessoas refugiadas que entravam no país a cada dia que passava. Na altura não se falava de refugiados sírios ainda por estes lados. Ora bem, esta mulher estava em final de tempo de gravidez. Tinha feito mais de 80 km a pé, atravessado o Anti-Líbano - a cordilheira síria que do outro lado da fronteira faz espelho com o Monte Líbano - e estava exausta, com frio, com fome e sede e o desespero de ter perdido a casa e a família num bombardeamento. Chegou sozinha e poucas horas depois teve a bebé. Quando regressámos para falar com ela, disse-nos apenas: “Agradeço a Deus”. Na altura pensei, eu que não acredito na existência de Deus, que talvez tivesse sido mesmo obra de Deus, já que nós fomos totalmente incapazes de evitar situações como esta.

Várias vezes contei este episódio porque se construiu uma narrativa de que refugiados são sinónimos de terroristas - como que se terroristas tivessem de arriscar a vida a atravessar uma cordilheira em pleno inverno ou a fazer-se ao Mediterrâneo em barcos a cair de podres - e porque se ignoram sempre as mulheres e as crianças, que são a esmagadora maioria de refugiados que chegaram à Europa, por não encaixarem no “rótulo”. Entre essas mulheres há muitas grávidas. Contactei ao longo destes anos com várias delas. Decidiram arriscar também porque não era já apenas a sua vida, mas a vida que carregavam. Mulheres grávidas refugiadas ou migrantes são numerosas, sim, por isso mesmo.

Trago este caso a propósito do debate em torno da proposta do PP espanhol, na sua lei da maternidade, que lançou a suspeita de que os trâmites de expulsão das mulheres grávidas imigrantes sem papéis fossem adiados se elas dessem os seus filhos para adopção, podendo as mulheres ficar no país enquanto estiverem grávidas. A sugestão surgiu no quadro de combate ao “inverno demográfico” que vive o país. A proposta que foi apresentada e comentada por dirigentes do PP, que mais tarde classificaram de barbaridade a leitura que estava a ser feita, já que a intenção era humanitária e de evitar que as mulheres usem o “expediente” da adopção para ficar no país. Confesso que me faltam os adjectivos para classificar esta proposta em qualquer das suas leituras. Náusea e vergonha é o que sinto. Aqui há de tudo: arrogância, superioridade cultural, violação de todos os direitos fundamentais e, em particular, da dignidade humana. Não há legalidade ou justificação possível para uma intenção que, na sua base, é criminosa.

Artigo publicado no jornal “Diário de Notícias” a 16 de março de 2019

Sobre o/a autor(a)

Eurodeputada, dirigente do Bloco de Esquerda, socióloga.
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