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As ditaduras “made in USA” e a Venezuela

O alinhamento de Portugal com o grupo de países que, no essencial, segue a política de Trump, não serve os interesses nacionais, nem sequer defende a comunidade portuguesa na Venezuela.

A história do século XX na América Latina, desmascara a manipulação informativa que nos é servida todos os dias a propósito da crise venezuelana. Vemos ser aplicada a receita do Chile em 1973. Desorganizar um país impondo-lhe um boicote, para depois oferecer ajuda humanitária que, em vez de ser distribuída pela ONU ou pela Cruz Vermelha, é usada por uma parte do conflito, para justificar uma intervenção militar.

Fazer passar Trump ou Bolsonaro como defensores da democracia é uma farsa completa. Os EUA e as oligarquias latino-americanas sempre defenderam e instalaram as mais ferozes ditaduras, quando os seus interesses económicos eram minimamente beliscados.

No final do século XIX sob a máxima da doutrina Monroe “A América para os americanos”, os EUA passariam a exercer o papel de potencia imperial nas américas. Durante todo o século XX, os EUA estiveram envolvidos com as ditaduras na América Latina. Todo o maniqueísmo macarthista que opunha um ocidente paladino da democracia contra o comunismo, não passou de retórica para justificar as próprias políticas autoritárias e a repressão a qualquer movimento contrário aos interesses económicos do novo império.

Os EUA foram, durante todo século XX, aliados e promotores de terríveis ditaduras na América Latina, financiaram todos os governos que garantiam seus interesses económicos com o preço da miséria, da fome e da morte de milhões de seres humanos.

As garras do império surgiram publicamente ao implantarem em 1902, uma cláusula na constituição de Cuba chamada de Emenda Platt, passando a ter direito de intervir militarmente, politicamente e economicamente no país. Entre outras coisas, os EUA passavam a controlar Guantánamo. Os EUA, “terra da liberdade”, apoiaram Fulgêncio Batista, ditador que governou Cuba entre 1933 e 1958. O tirano cubano mantinha ótimas relações com a máfia americana que fazia de Havana um enorme casino. Batista entregou todas as riquezas do país a empresas privadas norte americanas. Diferentemente da época de Fidel Castro, em momento algum da ditadura de Fulgêncio Batista foi feito um embargo, restrição ou críticas ao despotismo do presidente, nenhum presidente americano pensou em garantir a democracia na ilha.

Na Nicarágua, os EUA sempre apoiaram os Somoza, desde Somoza Garcia, que de 1936 a 1956 governou o país eliminando a oposição, tendo, inclusive, executado o general Sandino e seus simpatizantes. Somoza Garcia, respeitado pelos capitalistas americanos, tornou-se um dos homens mais ricos da América. Com a ascensão do movimento sandinista nos anos 70 e 80, a Nicarágua viria revelar a “ética” do governo norte-americano quando o governo Reagan para tentar impedir a vitória do sandinista Daniel Ortega, em 1986 utilizou dinheiro de armas vendidas ao Irão e o tráfico de droga para financiar os reacionários (os «contras») na Nicarágua.

Na República Dominicana, o aliado norte americano foi o ditador Rafael Trujillo. Este ficou mais de trinta anos no poder, deixando um saldo de milhares de mortes. O regime de Trujillo matava opositores em plena luz do dia e até exilados em outros países. O ditador que governou o país entre 1930 a 1961, chegou a ser dono de mais de 70% das terras do país. Sobre ele, o diplomata e secretário norte-americano Cordell Hull teria confidenciado ao presidente Roosevelt: “ele é um filho da puta, mas é o nosso filho da puta”.

A primeira ditadura da América Latina a contar com a intervenção direta da CIA foi a da Guatemala em 1954. O governo de Jacobo Arbenz promoveu algumas reformas de caráter nacionalista. A reforma agrária tímida de Arbenz, iria contra os interesses da United Fruit Company. Era mais uma «república das bananas».

No Paraguai em 1954, Stroessner foi eleito através da fraude, com ampla intervenção dos EUA. A eleição do ditador paraguaio aconteceu impedindo a existência de oposição. Uma vez no poder todos os partidos foram proibidos, exceto o ‘Colorado’. Sempre Stroessner era o candidato único e em eleições onde chegava a ter 99,9% dos votos. Stroessner ficaria no poder até 1989.

Com a vitória da revolução cubana em 1959, os EUA apertaram o cerco sobre a América Latina. É criada a Aliança Para o Progresso, cujo real objetivo era controlar de perto possíveis movimentos revolucionários.

Em 1964, duas ditaduras na América do Sul tiveram intervenção direta das forças armadas e do governo norte americano: Brasil e Bolívia. No Brasil quando o presidente eleito democraticamente João Goulart (gaúcho com origens açorianas), melhora alguns direitos dos trabalhadores e fala numa tímida reforma agrária, a oligarquia brasileira empurra os militares para o golpe e a ditadura. Sempre em nome da da “democracia” e contra o comunismo, a ditadura militar torturou e matou opositores. Hoje sabemos (porque os arquivos dos EUA já são públicos) de gravações de conversas entre o ex-presidente Kennedy e o então embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Lincoln Gordon, confirmando que conspiraram e encorajaram militares brasileiros a depor o presidente eleito. Uma frota dos EUA, incluindo um porta-aviões, estava na costa brasileira no dia do golpe, tendo o conhecimento desse facto influenciado a decisão do presidente João Goulart em não opor resistência ao golpe.

Na Bolívia, em 1967, o apoio norte-americano à ditadura foi fundamental para a morte de Ernesto Che Guevara.

Em 1966, começaria a ditadura militar Argentina. Assim como no Brasil, a ditadura na Argentina foi apresentada como uma grande revolução democrática. Muitos opositores foram atirados vivos de aviões no mar, 340 campos de concentração foram criados onde trabalhadores “subversivos” eram castigados e condenados à escravidão, cerca de 9 mil pessoas foram mortas e outras 20 mil desapareceram, deixando filhos órfãos, pais e mães desesperados.

Em 1973, os golpes militares chegariam ao Chile e Uruguai. Em 1970, Salvador Allende foi eleito, não era um revolucionário, mas líder do PS chileno. Os documentos da CIA, desarquivados pelo ex-presidente Bill Clinton em 1999, destacam que logo após a eleição de Allende em 1970, o ex-presidente Richard Nixon autorizou o então diretor da CIA, Richard Helms, a minar o governo chileno. A CIA pagou 35 mil dólares a um grupo de militares chilenos pelo assassinato do general René Schneider, comandante-em-chefe do Exército fiel a Allende. Em outubro de 1972, a greve patronal dos camionistas chilenos durou nada menos de 26 dias, tempo suficiente para desorganizar a vida do país andino e criar as condições para o golpe de Estado que derrubou Allende no ano seguinte.

O golpe que colocou o general Augusto Pinochet no poder, deixava clara a intenção dos empresários e governos que o orquestraram. A ditadura chilena aplicou o neoliberalismo, aliou-se totalmente aos EUA, fez reformas privatizantes na educação e na previdência, ajudou a trazer empresas transnacionais que recebiam várias benesses e isenções fiscais, enquanto os trabalhadores sentiam a baixa salarial e a carestia. Para manter as empresas estrangeiras e a elite chilena mais reacionária lucrando muito, o governo utilizou de toda forma de violência, chegando a prender pessoas em estádios de futebol e promover milhares de fuzilamentos.

Esta dolorosa história ajuda a compreender a atual crise venezuelana. Nem Maduro, nem Guaidó, são opções para o futuro do país. O alinhamento de Portugal com o grupo de países que, no essencial, segue a política de Trump, não serve os interesses nacionais, nem sequer defende a comunidade portuguesa na Venezuela. O governo português deveria privilegiar um papel de mediador, próximo das posições do México e do Uruguai, defendendo um papel decisivo da ONU na resolução do conflito, nomeadamente na organização de eleições livres. Alinhar com Trump e a sua cobiça pelo petróleo, é fazer da Venezuela um novo Iraque ou uma nova Líbia, mergulhada numa cruel guerra civil.

Sobre o/a autor(a)

Professor e historiador.
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