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Mais recetores do que dadores

Em contraponto com o sangue derramado em guerras estúpidas, movidas por interesses económicos, os Dadores Benévolos de Sangue combatem numa outra frente sem tréguas e sem trincheiras para salvar vidas.

Com exércitos de voluntários, anónimos por esse mundo fora, o sofrimento e o risco de vida são atenuados, porque uma minoria de gente generosa, dá um pouco de si para que outros possam viver, ou ter melhor qualidade de vida. É uma questão de consciência cívica, que infelizmente rareia e contrasta com muito egoísmo e futilidade.

Ainda me recordo do tempo em que pela falta de sangue se morria, existindo a necessidade de procurar um familiar, um amigo, ou alguém, que a troco de uma gratificação desse sangue. Hoje, felizmente e graças ao trabalho voluntário e à solidariedade dos Dadores, ainda vão existindo reservas para garantir que o sangue não falte. Mas da parte dos governantes subsiste pouco interesse, para promover a Dádiva e os constrangimentos são cada vez maiores.

Graças ao avanço da ciência, o sangue tem outra dimensão e no seu fracionamento é possível um aproveitamento integral, sendo que, pela primeira vez, este ano, já estão disponíveis medicamentos plasmáticos, com plasma oriundo das colheitas em Portugal. Infelizmente, somos o único país europeu dos ditos desenvolvidos, que não aproveita na totalidade o plasma recolhido.

Com apenas 30 mil litros de plasma aproveitado em 2018, o Estado português poupou quatro milhões de euros e podia ser muito mais, pois tanta falta faz ao nosso Sistema Nacional de Saúde, que depois de depenado pelos privados, já está preso por arames e até nisso coloca em causa a dádiva de sangue.

O número de Dadores está a diminuir, alguns dirigentes estão a braços com a renovação e enquanto isso, a política europeia, está mais preocupada em salvar Bancos e banqueiros, do que em salvar vidas. No geral, o movimento associativo e o voluntariado depara-se com várias dificuldades e a título de exemplo, temos a complicada ou falta de disponibilidade das pessoas.

É um facto que as pessoas dispõem de menos tempo livre, não são donos desse tempo e são vítimas de um ritmo laboral, que as deixam cada vez mais exaustas e vítimas de stress. Tudo isto, porque os ritmos de trabalho, a flexibilidade, a precariedade e leis exploradoras, deixam as pessoas sem margem para o associativismo, para o voluntariado e até para a dádiva. Esta situação obriga os poucos que conseguem alguma disponibilidade, a um esforço maior e os riscos de garantir este trabalho voluntário, agravam-se com o tempo.

Resolver esta situação, não é nenhum quebra-cabeças, é uma questão de consciência cívica e vontade política. É preciso apoiar o associativismo e o voluntariado, sem jogos de interesses e a vergonhosa interferência política. A mudança de leis laborais e o combate à precariedade, também, seriam um sinal de progresso e de interesse pelas causas sociais.

A diretiva europeia do sangue em desenvolvimento devia regulamentar melhor, o apoio financeiro necessário e as regras de funcionamento às organizações ligadas à dádiva de sangue. Também, à Organização Mundial de Saúde (OMS), não basta ter o desiderato de querer até 2020, a dádiva benévola e altruística em todo o mundo; tem de trabalhar para isso e aplicar a sua influência, porque os riscos de termos o contrário, estão bem presentes.

O sangue não se fabrica, é universal e em Portugal são necessárias entre 900 a 1000 dádivas por dia. Só os doentes oncológicos precisam de cerca de metade dessas colheitas, em função dos seus derivados. Todos os anos, só com crianças, registam-se cerca de 400 novos casos de cancro pediátrico.

Se alguém pensa que tudo o que estive a descrever é um problema secundário, a sua opinião vai mudar um dia que precisar, ou conhecer alguém necessitado de um voluntário ou de uma dádiva. Por várias razões, existem casos em que as pessoas não podem, não querem ou não conseguem participar no voluntariado, ou na dádiva, mas sempre podem apoiar, nem que seja a passarem a mensagem.

Com uma esperança média de vida de 80 anos, existem 75% de possibilidades de todos virmos a necessitar de sangue, ou dos derivados; por isso, somos todos responsáveis por essa resposta. Os problemas com a saúde agravam-se e a nossa “guerra” é desigual, porque temos mais recetores do que dadores.

Artigo publicado em podcast, em radioportalegre.pt/index.php/desabafos/paulo-cardoso.html

Sobre o/a autor(a)

Analista. Membro do Bloco de Esquerda.
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