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Não me apetece ser submissa, meu amor

“Bem-vindo a casa, meu amor”, digo-lhe, enquanto lhe abro a porta para o século XVI. Eu sei que estamos em 2019, até já temos computadores, mas Joana Bento Rodrigues (JBR), membro da TEM/CDS, permite-nos esta fantasia de vivermos em dois séculos ao mesmo tempo. E que seria de nós sem fantasias?

Num artigo publicado no Observador, JBR diz-nos julgar que as feministas não precisam de relações estáveis – porque somos de outra estirpe. Não queremos engravidar para não deformar o corpo – talvez o queiramos impecável para o assédio. Não queremos perder as oportunidades profissionais – porque achamos que o nosso tempo e o nosso trabalho têm valor e não estamos destinadas a ser a sombra de um homem. Fugimos frequentemente da elegância no vestir e no estar – apesar de sermos obcecadas com o corpo. Rejeitamos ainda “as características mais belas da mulher”: o “potencial feminino, matrimonial e maternal”. É giro, pois não?

Estarão o leitor e a leitora já preocupadíssimos: mas o que será o “potencial feminino”? JBR considera que é “tudo o que, por norma, caracteriza a mulher”. Seios arredondados, útero, quistos nos ovários? Não. Uma mulher é uma pessoa que “gosta de se arranjar e de se sentir bonita” (os homens, coitados, são todos alérgicos a creme hidratante); que “gosta de ter a casa arrumada e bem decorada” (o meu marido, coitado, é um javardo); que “gosta de ver ordem à sua volta” (os homens, coitados, guardam garfos no frigorífico); que “gosta de cuidar e receber e assume, amiúde, muitas das tarefas domésticas, com toda a sua alma, porque considera ser essa, também, a sua função” (os homens, coitados, levam uma humana ao registo civil ou ao altar e saem de lá com um electrodoméstico com garantia vitalícia). Pausa no texto para auto-louvor: ter conseguido digitar estas citações sem ter apanhado cancro nos dedos é uma prova de saúde, rigidez psicológica, frieza perante o estulto e habilidade mental inestimáveis.

O “potencial matrimonial” já terá que ver com o “amparo” e a “necessidade de segurança”. É que a “mulher gosta de se sentir útil, de ser a retaguarda e de criar a estabilidade familiar, para que o marido possa ser profissionalmente bem sucedido”. Como? Isso: as mulheres não são bem pessoas, são uma coisa “útil”, coadjuvante. Não têm de ter sonhos nem ambições, não têm de querer meter as mãos no mundo, não têm de querer fazer com que ele avance. Devem ficar quietas, pôr o jantar na mesa a tempo e horas, para que os maridos possam ter sucesso profissional. E para que o quereriam elas? Para que quereria uma mulher dar aulas, escrever livros, erguer prédios, ganhar campeonatos de futebol, intervir no mundo, quando pode amassar na cozinha e fazer bolachas com pepitas de mirtilos? Quem não entende isto não só estará com as prioridades trocadas como não conhecerá a maravilha dos hidratos.

JBR considera que as mulheres não se incomodam em receber menos do que os maridos, “até pelo contrário”. É que gostam (!) de que os maridos recebam mais, ficam orgulhosas disso. Por que interessará isto à mulher, pergunta o leitor? “Porque lhe confere a sensação de protecção e de segurança.” Ou seja, não só não passam pela vergonha de terem um homem que comete o opróbrio de ganhar menos do que uma mulher como garantem que têm um homem a sério, másculo e destemido, que tome conta delas. Para mais, enquanto sub-espécie, o sub-trabalho que as mulheres fazem deve ser subvalorizado.

O potencial da maternidade é algo “biológico”, diz-nos a nossa querida JBR, antes de falar sobre “amor”, “ternura” e “encanto”, remetendo para um canto também todos os pais que cumprem o seu papel.

Este texto de JBR serve para quê? Para caricaturar a realidade, andar séculos para trás, fazer-nos ver o escuro. JBR defende que o “sucesso laboral” é um “apelo mais masculino”. Que alguém que saiba ler e escrever possa não ver que reside aqui uma defesa acérrima da subalternidade das mulheres é o grande escândalo do século XXI. Passámos por duas guerras mundiais no século passado, vivemos num planeta que ainda acha que as diferenças cromáticas podem e devem fundamentar uma hierarquia de valores, e ainda há quem venha julgar que o sucesso laboral é o destino de metade da população, inutilizando, ridicularizando a outra parte. E isto porque a mulher dedica “menos tempo que o homem às causas partidárias e ao estudo da História e da actualidade, enquanto conhecimento necessário para defender e representar uma Nação”. As generalizações revelam sempre falta de conhecimento da realidade, e talvez JBR se encaixe neste papel estulto e estupidificante a que decide condenar todas as mulheres do planeta, mas o feminismo não serve para aquilo de que o acusa. Pelo contrário, serve para dizer às mulheres o mesmo que é dito aos homens: nos corpos delas mandam elas, nas vidas delas mandam elas, escolham pôr maquilhagem ou não, escolham estudar História ou não, escolham fazer literatura ou não, escolham ter representatividade no ensino superior, na medicina e na advocacia ou não. Para JBR, esta escolha é um problema: refere-se a esta última representatividade, que é superior nas mulheres em Portugal, como sendo “preocupante”. Mas o que é preocupante é estarmos em 2019 e pensarmos à século XVI; que alguém ache que a “natureza da mulher” existe, ao invés de séculos de opressão ongoing, que se queira fazer de nós biombo, bengala, cabeça descerebrada.

Uma mulher que se declara anti-feminista (portanto, contra a igualdade de direitos entre homens e mulheres) não apenas deseja submeter-se ao escuro, mas resolve agir enquanto carrasco de milhões de mulheres pelo mundo. Falo de coisas como desigualdade salarial, violações sexuais, menorização psicológica, redução de um ser humano a um papel de tratar de outros. É isto que acontece a uma espécie dividida entre dois – não homens e mulheres, mas pessoa inteira e sub-pessoa criada por oposição, em relação de alteridade, contra o válido e o neutro.

Que JBR queira fazer da sua vida uma tarde na cozinha a lavar pratos, será com ela. As várias correntes do feminismo existem para dizer que esse caminho não é o único, que a cada mulher o seu. Existem para dizer que as mulheres não estão na retaguarda mental face aos homens, e portanto não deve caber-lhes a priori um lugar na sombra. Até podem escrever em jornais, influenciando milhares de leitores, em vez de estarem em casa a limpar o pó aos livros de História que nunca foram lidos. A submissão não é pois um caminho a ser decidido por alguém ou por outrem. A isso chama-se escravatura; a quem o preconiza, carrasco.

Que JBR tenha a família que quiser, mas que não a imponha a mais ninguém. E o mesmo se aplica a trabalho, a função no mundo, a partidos, a activismos, a desporto, ao que for. Da mesma forma que não aceito que homem nenhum me mande para a cozinha, não aceito que mulher nenhuma me mande para a sombra de um homem.

Mas ainda bem que JBR existe. Não pelas mulheres que querem as rédeas da vida, não pelo conceito mais básico de dignidade humana, que não cria uma hierarquia de direitas, mas pelos milhares de homens, coitadinhos, que estavam a ter tanta dificuldade em se adaptarem a não terem criadas. Irão agradecer o texto, e JBR poderá então dar-lhes dois pastéis de nata caseiros, depois de lhes ter lavado as meias.

Sobre o/a autor(a)

Doutorada em Literatura, investigadora, editora e linguista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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