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O pior crime e a má consciência

A impunidade não é só um problema de justiça, é uma mensagem para os agressores e para as vítimas. Uma mensagem tão errada que há mulheres que morrem por causa dela.

Desde que comecei a escrever esta crónica já dediquei alguns textos ao problema da violência doméstica e da violência de género. Nunca serão os suficientes, dirão muitas e eu concordo. Mas chegam para desvendar o que penso sobre o assunto, que não corroboro com visões simplistas nem alinho em soluções exclusivamente punitivas.

A propósito do 8 de março do ano passado escrevi sobre a necessidade de educar para a igualdade de género. Sobre “a dificuldade de explicar a um miúdo do oitavo ano por que razão o homem que daqui a uns anos será poderá, um dia, fazer mal à mulher de quem gosta”. E sobre “a dificuldade de explicar a miúdas do 10º ano por que razão mulheres, como aquelas que um dia serão, conseguem aguentar vidas arrastadas pela violência”.

Noutro artigo referi que “a violência contra as mulheres nasce nos subterrâneos da nossa educação, da nossa cultura, da nossa construção social de género”. A razão pela qual não me iludo com soluções meramente punitivas é porque compreendo a violência de género enquanto fenómeno social. Ela é a tradução violenta da posição subalterna das mulheres na sociedade em todas as dimensões da vida.

Sem este entendimento não seria possível explicar porque razão os ultra conservadores de todo o mundo fazem tiro às lei de combate à violência de género. Pretendem igualar a violência contra as mulheres a um crime de agressão comum porque acham que o patriarcado é a ordem natural da organização social.

Para que serve então este mapeamento verificável da minha análise sobre a complexidade do combate à violência de género? Para que possa agora fazer a defesa inequívoca do agravamento das penas para estes crimes e de uma reflexão sobre sistema judicial que os trata.

O Bloco de Esquerda tem currículo nesta matéria. Quando no ano 2000 apresentamos o Projeto de Lei 21/VIII, que tornava crime público a violência contra a mulher na família, muita gente achou que os riscos eram maiores que os benefícios. Que a legislação em vigor já estabelecia o quadro legal adequado e o problema era “educação”, “prevenção”, “aplicação da lei”. Mas esse projeto foi aprovado e a violência doméstica passou a ser crime público. Haverá alguém que queira voltar atrás nessa decisão?

Então porquê tanta resistência em alterar o quadro penal do crime de violação? Em torná-lo crime público, em tipificá-lo como um ato sexual sem consentimento (em vez de exigir violência física como critério), em agravar as penas aplicáveis? Porquê a resistência em agravar o quadro penal da violência doméstica? Os mais benévolos respondem que mudar a lei não muda tudo.

Há 19 anos, Maria Celeste Cardona deu voz ao único voto contra a violência doméstica como crime público, o do CDS/PP: “O que a bancada do Partido Popular quer é ajudar a resolver o problema da vítima, não é ajudar a limpar a consciência do Estado. Nada se resolve apenas acrescentando ou retirando palavras à lei”. Andaremos há 20 anos a reciclar os mesmos argumentos para falhar na justiça às mulheres?

Ninguém tem o monopólio do combate à violência de género. Mas este ano já morreram 9 mulheres. Na última tragédia foram assassinadas uma mulher e uma criança. O caso era de "violência doméstica de risco elevado". Mas o processo acabou por ser tratado pelo Ministério Público do Seixal como um crime de coação e ameaça, que depende de queixa.

Mudar a lei não acaba com o problema. Mas quantas mulheres terão sido salvas em 20 anos de violência doméstica como crime público?

Sim, “aumentar penas não impede crimes nem apaga do mapa sexistas”, como diz Isabel Moreira. Mas todos os dias uma mulher é violada. E apenas 37% dos condenados cumpriram pena efetiva. Os acórdãos que não julgam um crime como violação porque não houve violência ou porque a vítima seduziu e dançou na pista antes de ser violada por dois homens numa casa de banho enquanto estava inconsciente, trouxeram justiça para alguém?

A impunidade não é só um problema de justiça, é uma mensagem para os agressores e para as vítimas. Uma mensagem tão errada que há mulheres que morrem por causa ela.

Num desses artigo escrevi: “Que acabe a impunidade e já teremos feito alguma coisa. Mas só quando acabar o machismo, só nesse dia, entrarei numa escola sabendo que nenhuma daquelas miúdas virá a ser uma mulher espancada pelo homem em que se transformou algum daqueles miúdos”.

Querer fazer depender o fim da impunidade do fim do machismo é não fazer nada. Esqueçam a consciência do Estado de que falava Celeste Cardona. E a nossa consciência, como é que fica?

Artigo publicado no jornal “I” a 7 de fevereiro de 2019

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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