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A desigualdade incrusta-se nos genes!

Não há volta a dar àquilo que a ciência já demonstrou: a desigualdade torna-nos todos diferentes logo à nascença e não há “mérito” que nos valha com genes partidos e cérebros suboptimizados.

Vinte e seis indivíduos têm tanto dinheiro quanto os 50% mais pobres do mundo - 3,8 mil milhões de indivíduos. A notícia recolhe suspiros de desagrado, encolher de ombros e talvez um “que vergonha”. E depois lá voltamos às nossas vidas de queixume sobre aqueles que recebem o rendimento mínimo (esses preguiçosos que não querem trabalhar...) que representa 0,2% (!!) do nosso orçamento de Estado. Ouvimos o André Ventura chamar parasitas aos mais desfavorecidos e pelo meio vemos uns filmes hollywoodescos sobre “casos de sucesso”, “Cristianos Ronaldos” que “vieram do nada” para o estrelato. Mas será mesmo assim? Uns são virtuosos e têm sucesso e os outros vivem mal porque são incapazes?

Por esta altura já deveria ser mais do que evidente que a desigualdade cria obstáculos e barreiras intransponíveis para quase todos aqueles que nascem e crescem na pobreza. Já não existem dúvidas que o principal fator que influencia o sucesso escolar é a condição sócio-económica. Dados não faltam. Mas eu quero ir ainda mais longe. À ciência.

Em 2004 duas psicólogas, Elissa Epel e Elizabeth Blackburn, conduziram um estudo em que compararam o tamanho de telómeros – as regiões terminais dos nossos cromossomas que protegem os nossos genes e que tendem a encurtar ao longo da vida: quanto mais velhos ficamos, mais curtos são os nossos telómeros - entre mulheres adultas sujeitas ao stress continuado de serem cuidadoras de uma criança com doença crónica incapacitante e mulheres sem esse problema. Os resultados do estudo, que viriam a dar o Nobel a Blackburn, eram claros: quanto maior o nível de stress, mais curtos os telómeros, logo mais envelhecidas são as células e mais susceptíveis estão os genes de serem danificados. Desde então surgiram muitos mais estudos que demonstraram que vários fatores de stress, entre os quais a discriminação racial e a condição sócio-económica encurtam os telómeros. Estudos conduzidos em crianças demonstram que uma infância com violência, instabilidade ou pobreza resultam em adultos com telómeros encurtados. Robert Sapolsky, da Stanford University, escreve mesmo que: “Uma criança criada na pobreza, terá na idade adulta telómeros uma década mais envelhecidos do que um adulto criado num ambiente mais abastado”. Isto se não contarmos com outros fatores stressantes, claro.

Mas a ciência não se fica por aqui. Muitos estudos recentes demonstram também que a exposição a condições sócio-económicas desfavoráveis afeta a estrutura cerebral e que quando somos expostos a elas em crianças o desenvolvimento do cérebro ressente-se para o futuro. O stress crónico induzido pela pobreza leva a um desenvolvimento deficiente do córtex pré-frontal, uma área do cérebro que nos permite tomar decisões complexas e a longo prazo e planear o futuro; diminui o tamanho do hipocampo que é essencial na aprendizagem; estimula a amigdala, uma estrutura responsável pela ansiedade; e altera o sistema mesolímbico dopaminérgico, aumentando o risco de depressão e adição. Torna-se bastante mais complicada a “ascensão social” ou o sucesso académico quando temos de viver com elevados níveis de ansiedade e depressão ou quando as estruturas responsáveis pela aprendizagem e pela tomada de decisões no nosso cérebro não estão optimizadas.

O que toda esta ciência nos diz é muito simples: a desigualdade sócio-económica cria desvantagens claras nas pessoas mais desfavorecidas. Desvantagens que se incrustam nos genes e nos nossos cérebros, que deixam marcas irreparáveis para toda a vida. E isto não é ideologia. É evidência científica. Por isso está na altura de pararmos de achar que as pessoas são pobres porque não se esforçaram o suficiente. A pornográfica desigualdade que hoje cresce no mundo é um círculo vicioso, um problema que se sustenta a si mesmo: abandonamos crianças à sua sorte, partimos-lhes os genes precocemente, modificamos a estrutura do seu cérebro e no fim ainda lhes chamamos preguiçosas ou incapazes. Para encobrir esta sacanice inventamos umas teorias neoliberais sobre as “potencialidades humanas” e a meritocracia que o mercado livre supostamente viria a estimular. Não, não há volta a dar àquilo que a ciência já demonstrou: a desigualdade torna-nos todos diferentes logo à nascença e não há “mérito” que nos valha com genes partidos e cérebros suboptimizados.

Sobre o/a autor(a)

Médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
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