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O Homem enxovalhado e ninguém diz nada sobre o escândalo?

O Governo resolveu alterar uma tradução em boa hora pergaminhada, a da Declaração Universal dos Direitos do Homem, passando a chamar-lhe, vejam só a afronta, Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Demorou setenta anos a ganhar-se coragem para esta insídia, mas agora chegou-se ao dia da censura, porque isto é censura, é ignomínia.

Ninguém? Nem uma palavra? Há dias a coisa era tão importante, sangravam as almas, a família estava ameaçada, e se a família está ameaçada já não sobra nada, e agora olhos em alvo, mirar a superlua, como se não fosse nada connosco? Clamavam pelo rigor contra a língua conspurcada, pela pátria ameaçada, e agora é tudo a fingir que o que interessa é o Trump e o muro, o Macron e os sábados de manhã, a May e a fronteira virtual nas Irlandas, o Centeno e a reforma do euro, o Brasil, o fascismo, o vírus da gripe, o futebol do fim de semana e o mais que for? Então até aqui há dias havia prioridades, havia uma nação a defender, havia gente com vontade de levantar um tabefe contra a insolência, e agora é piar fininho?

Estou desolado com as pessoas em quem mais confiava. Aquela historiadora que se dedica à “história do homem” através dos tempos, essa fica muda. O artista que destapou a conspiração soez já não diz remoques sobre o assunto. Os estudiosos que acham que é do foro da gramática e, por isso, vaca sagrada, encolhem os ombros. O Presidente, que devia assegurar o regular funcionamento das instituições, parece que nem se dá conta da gravidade do caso, distrai-se com camiões de longo curso.

Eu digo-lhe, caro leitor, de que se trata, mas já adivinhou qual é tamanha ofensa: muitos anos depois, o Governo resolveu alterar uma tradução vetusta, mas sólida, em boa hora pergaminhada, a da Declaração Universal dos Direitos do Homem, passando a chamar-lhe, vejam só a afronta, Declaração Universal dos Direitos Humanos. Demorou setenta anos a ganhar-se coragem para esta insídia, mas agora chegou-se ao dia da censura, porque isto é censura, é ignomínia.

E o Homem, como fica no meio desta rebaldaria? Escarnecido, como se tivesse abusado no título durante uma eternidade? Desprezado, como se os seres humanos fossem mais do que o “Homem”? E o que vão dizer os chefes de família, os que conduzem este país temente e trabalhador? Que as mulheres agora são “seres humanos”, que é tudo igual, que se confunde quem manda e quem obedece? Era politicamente correta, ou mesmo corretíssima, aquela tradução que dizia tudo sobre a vida, a bela expressão de Direitos do Homem; era mesmo gramaticalmente correta, pois a gramática, como toda a gente notou, desceu dos céus como a Tábua da Lei que Moisés recebeu e que, desde então e até antes dele (a Tábua era retroativa, é certo e sabido), rege os destinos dos Homens e da sua trupe (e, portanto, da sua gramática). Aceitar pôr em causa este mandamento sagrado é atacar o Homem, é submetê-lo ao vexame da igualdade, é ameaçar a família, que devia ser uma hierarquia estável, a alegria do mando e da submissão. Deem-me a alavanca de uma palavra e o mundo desabará, deveria ter dito Arquimedes e se não disse é porque não percebia nada de coisas de Homens.

Era o que faltava que este Governo bolchevique viesse agora impor esta coisa pérfida de Direitos Humanos sem uma guerra assanhada. Mas os jornais da boa-fé não querem saber? E os partidos? E a tropa? Não percebem o que os bolcheviques querem mudar a seguir? Imporão que o casamento possa deixar de ser feito pela Igreja, se o Homem aceitar tal rebaixamento? Determinar que as mulheres votam? Ou que podem ser eleitas? Ou que haja tantas eleitas como eleitos? Ou, pior do que tudo, que o plural de homens e mulheres deixe de ser dito, como é sobejamente evidente, “Homens”? Vade retro. Estão a ver como começam as desgraças? Muda-se de mansinho uma tradução e aqui vai disto, daqui a pouco as mulheres querem chegar à universidade, olhem lá onde isto vai parar, ainda acabam a querer ser consideradas como parte do país.

Artigo publicado em expresso.pt a 22 de janeiro de 2019

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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