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E antes do adeus?

Com argumentos que não deixam nada a dever à narrativa da extrema-direita continental na xenofobia contra imigrantes, o Brexit é a cara do fracasso europeu.

O que cabe à esquerda dizer? Que entre mortos e feridos se salve a democracia. Que não sejam os milhões de pessoas do continente e do Reino Unido deslocadas, imigrantes ou em trânsito a pagar o preço de um acordo falhado entre burocracias e burguesias que não se entendem sobre mercados.

This is like when Geri Halliwell over-estimated her viability as a solo artist and left the Spice Girls1– salva-se o humor nas manifestações que em Londres vão opondo remainers e brexiteers. Não há dúvida de que o percurso do Brexit tem sido tudo menos aborrecido para quem tenta antever o seu desfecho. As hipóteses são muitas e o chumbo do acordo proposto por Theresa May ao Parlamento britânico não retira um grama à incerteza que pesa sobre o futuro do Reino Unido.

O acordo negociado entre May e a União Europeia sofreu a derrota mais estrondosa da história da Câmara dos Comuns. A própria primeira-ministra sabe que tem a sua legitimidade afetada e por isso desafiou o líder dos trabalhistas, que assumiu o desafio, a apresentar uma moção de censura. No momento em que escrevo, a moção de censura anunciada por Jeremy Corbyn ainda não foi votada. Mas é improvável que os trabalhistas encontrem maioria para derrubar o governo conservador, o que só adensa as interrogações.

O cenário de eleições antecipadas parece estar fora de cena no imediato, pelo menos se May puder contar com a palavra do Partido Unionista Democrático (DUP na sigla em inglês). Os seus dez deputados, apesar de escassos em número, assumiram uma importância definitiva neste mandato. Quis o resultado democrático, tanto das eleições como do referendo, que a questão irlandesa fosse capital nas negociações dos conservadores dentro e fora do Reino Unido.

O maior partido da Irlanda do Norte apoia Theresa May, achando que isso é a melhor forma de evitar um hardbrexit, uma saída sem acordo. Ao contrário da Escócia, que pretende manter-se na União Europeia, nem que para isso tenha de repetir um referendo de independência, Belfast está de acordo com o Brexit desde que isso não implique uma fronteira física com a República da Irlanda.

A par da situação de cidadãos europeus no Reino Unido e britânicos no espaço europeu, a questão irlandesa é mais delicada de tratar tanto em caso de acordo como de não acordo para a saída. Está ainda fresca a memória das Irlandas pré-acordo de Sexta-feira Santa que há 20 anos assinaram a paz depois de demasiados domingos sangrentos. O acordo estabeleceu a assembleia parlamentar da Irlanda do Norte e definiu que o estatuto da região jamais seria alterado exceto por consentimento popular.

Se o cenário da saída não negociada levanta o receio de reacendimento do conflito, o acordo do Brexit tão-pouco satisfazia a Irlanda do Norte. O chamado backstop, uma cláusula de salvaguarda temporária relativa ao não restabelecimento de fronteiras, não chegou para satisfazer os unionistas. Os receios existem também na República da Irlanda. O Sinn Fein já afirmou que a Irlanda “não pode ser um dano colateral” e propôs ao governo que realize um referendo sobre a unificação da Irlanda caso o Brexit falhe e o Reino Unido saia da União Europeia sem acordo.

O problema é que nem a renegociação a que Theresa May estará obrigada caso se mantenha no governo nem o adiamento da decisão parecem ser a solução para um processo que começou torto. Qualquer Brexit será doloroso, e muito mais porque a Comissão Europeia quer fazer da decisão dos britânicos um aviso para classificar qualquer tentativa de exercício democrático de outros Estados como aventureirismo.

Por fim, há os mercados. Essa fonte de chantagem interna que anuncia catástrofes económicas a cada esquina, mas que não terão dificuldade em adaptar-se à renovação de laços atlânticos agora que os Estados Unidos estão “a caminho” de ser great again.

Com argumentos pró-Brexit que não deixam nada a dever à narrativa da extrema-direita continental na xenofobia contra imigrantes; tendo como alternativa um projeto europeu em desagregação que não protege as democracias, ataca os direitos sociais e estende passadeiras aos ultras, o Brexit é a cara do fracasso europeu.

Perante este cenário, o que cabe à esquerda dizer? Que entre mortos e feridos se salve a democracia. Que não sejam os milhões de pessoas do continente e do Reino Unido deslocadas, imigrantes ou em trânsito a pagar o preço de um acordo falhado entre burocracias e burguesias que não se entendem sobre mercados.

A prioridade tem de ser a proteção de direitos fundamentais de todos os cidadãos. O governo português assegura que salvaguardou os portugueses no Reino Unido com um plano de contingência. No entanto, chumbou a proposta do Bloco no Orçamento que propunha reforço da rede consular. É normal que se exijam garantias reforçadas ao governo, e isso impõe que todos os cenários sejam considerados, sem negação nem ingenuidade. Apesar de todo o humor britânico, o assunto é mais sério do que o fim de uma girls band.

Artigo publicado no jornal “I” a 17 de janeiro de 2019

Nota:

1 Isto é como quando a Geri Halliwell sobrestimou a sua viabilidade a solo e deixou as Spice Girls

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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