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França: as razões da ira

Macron, o banqueiro-presidente que quer acabar de dar cabo do que resta do modelo social das trente glorieuses, desde o direito do trabalho até às reformas, desde a habitação até à proteção social.

A estupefacção espelhada nos rostos e nos discursos do poder e dos seus lacaios, perante a agitação social que lavra actualmente em França, é inversamente proporcional à gritante evidência dos factores que a motivam.

Pois, não era expectável, à luz dos mais elementares ensinamentos da História e das Ciências Sociais para já não dizer do mais elementar bom senso, que quase quatro décadas de neoliberalismo desenfreado a culminar com ano e meio de guerra social aberta contra a população, conduzissem inelutavelmente à revolta e mesmo à insurreição populares?

Mas em que mundo e em que país vivem os comentadores, os peritos, os media, as elites para não verem que a França está doente, doente da Europa neoliberal, da desindustrialização, das deslocalizações, da desvalorização interna, do desemprego em massa, dos reformados maltratados, da juventude sem horizonte, do velho mundo que se está a desmoronar?

Mas em que mundo e em que país vivem, para não terem compreendido os sinais dados pelo voto cerrado a favor do tratado de Maastricht, em 1992, o Não ao Tratado constitucional em 2005, depressa contornado, a revolta dos subúrbios no mesmo ano, as lutas ferozes dos trabalhadores contra as deslocalizacões e os despedimentos de que são exemplo a Goodyear, os Conti, a Air France, as gigantescas manifestações contra a lei trabalho, a abstenção recorde, eleição após eleição, ou a avassaladora progressão da extrema direita nas últimas décadas?

Mas em que mundo e em que país vivem, para não terem compreendido que todos estes fenómenos são a manifestação do mal-estar e da resistência que as políticas predadoras neoliberais têm exercido sobre a população e vindo a suscitar dela? A força do actual movimento é a de ele ser congregador de solidariedades mais vastas devido à sua transversalidade.

Quem, na sociedade francesa, à parte os que ocupam a parte cimeira da pirâmide social, não se sente atingido pelo ritmo selvagem imprimido à revolução neoliberal por Macron, o banqueiro-presidente que quer acabar de dar cabo do que resta do modelo social das trente glorieuses, desde o direito do trabalho até às reformas, desde a habitação até à proteção social, tornando cada um responsável pela sua própria desclassificação, essa desclassificação em massa de que ele incarna o mais recente e sinistro obreiro?

É este sentimento de desclassificação ou do seu perigo eminente, o denominador comum que está a congregar solidariedades perante o olhar estupefacto e apavorado de políticos e intelectuais de serviço que vêem desfilar à sua frente a manifestação da luta de classes que sempre quiseram negar.

Continuando a não ver o óbvio ou por atracção pela política da avestruz, ou por incapacidade cognitiva ou deliberadamente, dão as mãos uns aos outros para entoar um confrangedor hino contra a violência, como se a violência, essa violência de que falam, não fosse a consequência de uma outra violência, essa anterior, essa surda, avançando mascarada, não dizendo para o que vem, mas destruindo tudo à sua passagem: a violência institucional que lança e ameaça lançar todos os  dias para a margem da sociedade, franjas cada mais vastas da população.

Têm razão as classes dominantes e o poder macronista que as incarna de terem medo: é que os manifestantes que tomaram de assalto as rotundas e as ruas da capital e da província, mistura das classes rurais abandonadas pelo Estado e das classes populares urbanas e suburbanas que se lhes vieram juntar, não são meros manifestantes justapostos uns aos outros. São homens e mulheres que adquiriram a consciência de pertença a classes despojadas pelo mesmo Estado que é a vaca leiteira das classes dominantes.

Esta consciência de classes exploradas unindo-se contra as elites exploradoras está patente nas reivindicações de restauração do imposto sobre a fortuna, de instauração de tectos salariais, ou de repúdio da dívida pública ilegítima. Como está patente na reivindicação de outra forma de democracia (directa) susceptível de colmatar o vazio de uma democracia dita representativa mas de cuja não-representatividade eles incarnam a mais recente, a mais concreta e a mais acabada prova.

É essa consciência de classe que mete medo ao poder e o está a fazer ultrapassar, em limites nunca dantes atingidos, as fronteiras de um Estado que teima em dizer-se democrático e de direito. Mas ao proceder assim, ao substituir a postura de guardião da ordem pública que lhe incumbe, por uma postura belicista contra o povo que erige em inimigo, o poder macronista está a exacerbar perigosamente a situação e a contribuir para que ela atinja um ponto de não retorno.

À ira provocada pela fratura social, veio agora juntar-se uma outra razão de ira para a França das classes laboriosas: a que nasceu da violência inédita que o poder mobilizou contra elas. Espécie de rito de iniciação para muitos primo-manifestantes, a violência policial que se abateu sobre eles contribuirá, decerto, para consumar, de forma irreversível, a sua rotura com o poder.

Artigo publicado no jornal “Público” a 5 de janeiro de 2019

Sobre o/a autor(a)

Doutorada em Ciências de Gestão pela Universidade de Paris I – Sorbonne; ensinou Economia portuguesa na Universidade de Paris IV -Sorbonne e Economia e Gestão na Universidade de Paris III – Sorbonne Nouvelle
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