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Vai, Brasil (1)

Os primeiros dias de governo são pior prenúncio do que todos os de campanha, porque são reais. Foi esse o peso de ver passar o primeiro dia do ano, a partir de agora está mesmo a acontecer.

Bolsonaro não explica o que significa para ele manter a bandeira verde e amarela, mas compreendemos bem a referência ao sangue num homem que exalta a tortura e os torturadores, que acha que o erro da ditadura foi matar pouco e que em plena campanha disse que “vamos fuzilar a petralhada” como ameaça aos militantes do PT.

Na tarde do dia 1 de janeiro parecia que o novo ano começava e o Brasil acabava. Como no primeiro dia de uma desgraça anunciada, Jair Bolsonaro tomou posse. Acabou o tempo da especulação sobre o que será um Brasil governado por um dos piores representantes da ultradireita, um racista, um sexista, um militarista com simpatia pelo autoritarismo. Acabou o tempo dos disparates do candidato. Agora a palavra do presidente é política de Estado.

As primeiras dúvidas começaram a ser dissipadas com um discurso inaugural que deixou pouco a dever ao Bolsonaro da campanha. Foi uma renovação de votos com os setores Bíblia, Boi e Bala, de onde virão os principais apoios ao novo governo. Promessas de menos regulamentação e carta branca para o agro-negócio e grandes proprietários rurais, liberalização do porte de arma para os “cidadãos de bem” e um combate sem tréguas à “ideologia de género” que ameaça os “valores tradicionais”.

O apelo à união do povo brasileiro, referência da praxe em discursos de tomada de posse, choca com a violência com que classifica toda a oposição como defensores da “ideologia da corrupção”. “Essa é a nossa bandeira, que jamais será vermelha. Só será vermelha se for preciso o nosso sangue para mantê-la verde e amarela”. Bolsonaro não explica o que significa para ele manter a bandeira verde e amarela, mas compreendemos bem a referência ao sangue num homem que exalta a tortura e os torturadores, que acha que o erro da ditadura foi matar pouco e que em plena campanha disse que “vamos fuzilar a petralhada” como ameaça aos militantes do PT.

Na sequência do discurso vieram também as primeiras medidas do novo governo. Sem ir ainda ao que suspeitamos que está por vir, o que já chegou não surpreende. Nos primeiros dois dias, Bolsonaro assinou quatro decretos e uma Medida Provisória. Num dos decretos, fixou o salário mínimo em R$ 998,00, quando o que estava previsto era R$ 1006,00. “Povo começou a se libertar do socialismo”, foi a reação irónica de Fernando Haddad nas redes sociais perante uma medida demasiado simbólica para não ser notada como um sinal para os grandes patrões.

Não menos simbólicas são as mudanças determinadas na Medida Provisória 870/19 que faz a reformulação administrativa de vários setores do governo. Entre outras, cumpre-se a promessa de acabar com o Ministério da Cultura. E duas medidas aparecem como selo de garantia de que Bolsonaro continua a ser Bolsonaro:

A população LGBT sai da lista de políticas e diretrizes destinadas à promoção dos Direitos Humanos que fica a cargo do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandado pela pastora evangélica Damares Alves; É entregue ao Ministério da Agricultura, chefiado por Tereza Cristina da Costa, até então líder da bancada do agronegócio na Câmara, a tarefa de identificar e demarcar terras indígenas no país. Ou seja, deixa-se a população indígena nas mãos dos proprietários rurais que sempre a expulsaram e assassinaram.

Os primeiros dias de governo são pior prenúncio do que todos os de campanha, porque são reais. Foi esse o peso de ver passar o primeiro dia do ano, a partir de agora está mesmo a acontecer. Mas, enxaguada a tristeza de ver um monstro a tomar posse num dos países mais importantes do mundo, terra de tantos amigos, todos sabemos que o Brasil não vai acabar.

Da resistência a cada uma das medidas do novo governo vai fortalecer-se e alargar-se o campo da resistência democrática. Dos que recusam as armas porque lembram Marielle, que estão ao lado dos indígenas porque conhecem as cores do seu país, dos que prometeram não largar a mão de ninguém. O Brasil não vai acabar porque haverá sempre quem lute pela democracia, pelos trabalhadores, pelo progresso. Vai, Brasil.

Nota:

(1) Alexandra Lucas Coelho, Tinta da China, 2013

Artigo publicado no jornal “I” a 3 de janeiro de 2018

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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