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Os demónios da Síria
Sempre que uma bomba explode numa qualquer praça de uma capital europeia ou que um lobo solitário decide que chegou o dia de atingir transeuntes inocentes, volta o pânico e a rotina do desassossego. Longos diretos televisivos seguidos de anúncios de detenções e execuções policiais, as autoridades avançam com novas medidas de segurança e os chefes de Estado desdobram-se em mensagens de solidariedade e garantias de cooperação.
Entre os povos do velho continente repetem-se, uma vez mais, as promessas de que o "terror nunca vencerá". Fazem-se loas sobre a força dos pilares em que assentam os regimes democráticos e como a pedra em que se inscrevem os seus valores não cede perante nenhuma ameaça - infelizmente, sabemos que está longe de ser assim. Para alguns, como é o meu caso, é novamente tempo de ter nervos de aço, respirar bem fundo e de esperar que, do lado de lá, se atenda rapidamente o telefone.
Quis a força das circunstâncias e a intensidade das crises portuguesas que a minha família se espalhasse um pouco por todo o lado. O meu pai vive em Paris, cidade particularmente martirizada pela Organização do Estado Islâmico (OEI), e trabalha no Aeroporto de Orly, onde se registaram tentativas de atentado. O mais recente foi em 2017, a não muitos metros do seu posto de trabalho. Não são necessárias muitas palavras para explicar como nos sentimos quando nos confrontamos com a primeira notícia sobre um acontecimento deste género, sempre parca em factos e relatos, não poucas vezes contraditórios. No primeiro impacto - nas primeiras frações de segundo durante as quais absorvemos a informação - vem-me sempre à cabeça um título de um romance de Sandro Veronesi: Caos Calmo (que na sua adaptação ao cinema conta com a participação do insubstituível Nanni Moretti). Lidar com o choque e mantermo-nos de pé para o que der e vier. Na verdade, uma análise honesta e racional à nossa impotência nestes momentos leva-nos a concluir que é a melhor coisa a fazer e a única que depende verdadeiramente de nós: manter a calma quando o caos é uma certeza.
Por estes dias, reunimos a família em Estrasburgo, onde se deu o mais recente ataque terrorista em território francês. Já o tínhamos planeado fazer há uns meses. Ter uma irmã bastante mais nova fez com que as excursões a mercados de Natal, desde há uns anos para cá, se tenham transformado num imperativo absoluto. Durante o inverno, a cidade sede do Parlamento Europeu ganha a relevância acrescida que só uma "capital francesa do Natal" pode ter. Entre luzes, barracas de vinho quente e pistas de patinagem no gelo, foi impressionante ver as ruas da cidade cheias de pessoas das mais diversas proveniências e confissões religiosas, a passear tranquilamente de um lado para o outro. No centro desta cidade alsaciana figura um memorial às vítimas de 11 de dezembro com mensagens nas mais variadas línguas e bandeiras de todos os cantos do mundo. Num cartaz grande com a tricolor lê-se "teremos sempre Estrasburgo". Como quem diz: "não permitiremos que as coisas deixem de ser como são". Mas as coisas já não são de facto como eram.
Em França, normalizou-se o patrulhamento militar e as revistas policiais nas zonas mais movimentadas, o país vive em estado de emergência permanente (institucionalizado através da "lei antiterrorismo" de Macron) e o medo sobre qual será o próximo alvo é uma presença constante nas conversas de café e nos órgãos de comunicação social. A outra face desta moeda é o crescimento da extrema-direita, da xenofobia, do ódio social e do apelo à força e ao autoritarismo.
A insegurança com que muitos cidadãos europeus vivem é um desafio ao qual o poder político precisa desesperadamente de responder. Não nasceu do acaso. E as suas raízes atravessam décadas de políticas irresponsáveis e decisões erradas em relação ao Médio Oriente. Sendo impossível mudar o passado, urge perceber como se chegou até aqui e não reproduzir os mesmos erros. Para tanto, não basta reconhecer que as intervenções militares no Afeganistão, no Iraque e na Líbia foram um desastre, fornecedor de todo o tipo de munição para que as cidades europeias sejam hoje palco de operações de terror, se as potências ocidentais continuarem a perpetuar as mesmas lógicas de ingerência externa, criadoras do caldo sociocultural de que se alimentam as lideranças fundamentalistas.
Não basta os governos de todo mundo lamentarem os assassinatos dos jornalistas e ilustradores do Charlie Hebdo e até desfilarem, em seu nome pela liberdade de expressão, nas ruas da capital francesa se, regressados aos gabinetes, bloqueiam medidas efetivas de combate ao financiamento e armamento das organizações terroristas e compactuam com regimes sangrentos que prendem e torturam quem ouse escrutinar o poder instituído. Não há explicação possível para que, relatório após relatório ou recomendação após recomendação das mais variadas organizações internacionais, ainda não se tenha posto termo à aquisição de petróleo de territórios controlados por grupos extremistas como o Daesh - durante anos a sua principal fonte de financiamento -, continue a ser permitida a exportação massiva de armas para zonas de conflito - sabia que os combatentes do OEI estão equipados com armamento norte-americano e europeu? - ou a deixar os paraísos fiscais, centros nevrálgicos de todo o tipo de criminalidade organizada, funcionarem pacificamente.
O nosso destino coletivo é merecedor de melhor sorte que só uma agenda efetiva para a paz pode proporcionar. Os cidadãos precisam de impor aos seus governos a coragem que lhes falta para tomar as medidas necessárias para que ela se concretize. Não nascerá de outra forma. O risco da eternização do atual status quo é demasiado elevado. Está a corroer os regimes democráticos e a dar força a agendas securitárias que abdicam paulatinamente de direitos, liberdades e garantias, fundacionais do constitucionalismo do pós-II guerra.
No plano imediato, isso significa que 2019 não pode começar por ser o ano do massacre dos curdos na Síria. Eles que foram os primeiros a infligir pesadas derrotas ao projeto do califado tanto na Síria como no Iraque. São a única força organizada verdadeiramente confiável no terreno e com uma agenda democrática e não sectária com provas dadas. A saída anunciada dos EUA do conflito sírio não pode, por isso, transformar-se numa carta branca para os exércitos de Erdogan perseguirem livremente os combatentes curdos, como parece ser a intenção de Trump e do "sultão" turco. Uma putativa nova traição a este povo teria custos incalculáveis no Médio Oriente e na Europa.
No plano de fundo, o sistema-mundo carece de um novo compromisso com a Declaração do Direitos Humanos da ONU e com o respeito pelo direito internacional. A atual desordem mundial parece ser apenas capaz de somar mais desordem. Se o inevitável período de pós-conflito sírio não vier acompanhado de um compromisso de reconstrução inclusivo, que rompa com as tentações imperiais que assombram a região há séculos, será uma questão de tempo até que o ressentimento dê novo alento à Organização do Estado Islâmico ou a um qualquer grupo que o venha a substituir, com as consequências que, infelizmente, conhecemos demasiado bem. Só a paz duradoura nos serve. É para ela que temos a obrigação de canalizar a nossa energia cívica.
Artigo publicado em sabado.pt a 28 de dezembro de 2018
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