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Vidas suspensas, famílias adiadas

A fronteira voltou a ser sinónimo de solução, pelo menos para os casos de PMA heteróloga. É, por isso mesmo, urgente resolver o nó jurídico em que se encontra a PMA no nosso país.

A procriação medicamente assistida (PMA) materializou o sonho de parentalidade de milhares de mulheres e homens. No nosso país, nasciam mais de 3 mil crianças por ano com recursos a técnicas de PMA. Um exemplo de sucesso, subitamente interrompido em abril passado.

A decisão caiu como uma bomba. A deliberação foi do Tribunal Constitucional (TC), no acórdão sobre as Leis n.º 17 e n.º25 de 2016, que, respetivamente, alargava o âmbito dos beneficiários das técnicas de procriação medicamente assistida (PMA) e regulava o acesso à gestação de substituição. De um dia para o outro, milhares de projetos de parentalidade foram declarados ilegais. E, onde havia estabilidade e previsibilidade jurídica, ficou um vazio legal, fruto de um pedido de inconstitucionalidade feito pelo CDS.

O TC não deu nenhuma razão ao CDS. Mas, aprofundando a avaliação aos diplomas, considerou que o anonimato dos dadores de embriões e gâmetas era “uma restrição desnecessária aos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade das pessoas nascidas em consequência de processos de PMA com recurso a dádiva de gâmetas ou embriões, incluindo nas gestações de substituição”, impossibilitando a utilização de material genético doado de forma anónima.

O que fazer? Que medidas tomar relativamente aos tratamentos em curso? Qual o destino a dar aos embriões criopreservados produzidos com recurso a gâmetas de dadores anónimos? Que seguimento dar aos embriões criopreservados para os quais foi prestado consentimento para doação anónima a outros beneficiários? O que fazer com os gâmetas criopreservados doados em regime de anonimato? Como compatibilizar os direitos das pessoas nascidas com recurso a gâmetas ou embriões doados em regime de anonimato com o direito dos dadores à manutenção do sigilo quanto à sua identidade civil legalmente consagrado à data da doação? Estas são as perguntas que o Conselho Nacional de PMA elencou e que resumem o imbróglio jurídico criado.

A incerteza é gigante. Há 8 mil embriões que correm o risco de destruição. Há mulheres ameaçadas pelo correr imparável do tempo, que estão a atingir a idade limite para tratamentos de PMA. Há ciclos de tratamento iniciados que estão em risco de voltar à estaca zero. Há centenas de projetos de parentalidade congelados, que foram obrigados a interromper os ciclos e procedimentos pois o material genético que estavam a utilizar era proveniente de dador anónimo. Há as listas de espera que engrossam sem quaisquer respostas sobre o futuro. Perante esta realidade, a fronteira voltou a ser sinónimo de solução, pelo menos para os casos de PMA heteróloga, procurando em Espanha o que se tornou impossível em Portugal. É, por isso mesmo, urgente resolver o nó jurídico em que se encontra a PMA no nosso país.

Para resolvermos os problemas, a PMA regressa a debate no Parlamento na próxima quinta-feira, pela mão do Bloco de Esquerda, que reservou a agenda do dia para esse nobre objetivo. O repto está lançado a todas as bancadas parlamentares, num tema que tem de estar acima das lutas político-partidárias.

As soluções começam pela definição de um período transitório, que retire do abismo da destruição o material genético recolhido sob o regime de anonimato anterior ao acórdão do TC. É indispensável para garantir a conclusão de tratamentos e procedimentos em curso, tendo em especial conta a escassez de gâmetas já existente. Para o futuro, é necessário criar um novo regime legal, onde se respeita o direito de acesso a dados civis do dador ou dadora por parte da pessoa nascida de procedimentos de PMA, cumprindo a decisão do TC.

Uma última palavra sobre as necessárias alterações ao regime da gestação de substituição. Relembrar que este regime foi criado para que as mulheres em situação de doença grave, caso de mulheres sem útero ou com uma lesão grave que impossibilite a gravidez, não fiquem impedidas de concretizar projetos de maternidade. O TC declarou-o constitucional, uma enorme vitória, mas exigiu que fossem salvaguardados os direitos da gestante. Isso só é possível se a gestante de substituição possa revogar o seu consentimento até ao momento de registo da criança nascida.

O objetivo é colocar a ciência ao serviço dos projetos de parentalidade e a lei a defender esses avanços.

Artigo publicado no jornal “Público” a 4 de dezembro de 2018

Sobre o/a autor(a)

Deputado, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, matemático.
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