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Austeridade, ponto e vírgula

Há uma santa propensão do entendimento para os assuntos caseiros, aqueles que nascem, sucedem ou padecem perante os nossos olhos.

É quase uma cruzada pelo autoconhecimento nos lugares onde já conhecemos tudo. Onde fica fácil. Mas a relevância das lembranças não pode ficar presa ao voto na reunião de condomínio, na sede da vizinhança ou nos nossos veneráveis lugares-comuns. Como João César Monteiro ou John Cage, o preto-a-negro da imagem, a alegoria do silêncio. Ou como Yves Klein e a galeria de arte desocupada em 58. A imagem de ausências. O salto no vazio é ainda mais válido 60 anos depois. O vazio para encher, um vazio para encher de verbos. Sangrar o amor.

A pose de equilíbrio que procuramos é sempre mal disfarçada. E por isso pouco sabemos acerca do que não sabemos automaticamente. Há uma errónea noção sobre a distância de quilómetros que nos separa do nosso metro quadrado. E não fosse essa ditadura da vizinhança, algo mais saberíamos sobre a notícia mais relevante da semana: a proposta para a transposição das regras do Tratado Orçamental para o direito comunitário foi rejeitada e, através de um empate técnico em sede de votação na comissão de Assuntos Económicos e Monetários do Parlamento Europeu, é possível equacionar que não haja coragem da Comissão Europeia para propagar - à revelia dos parlamentos nacionais - a aberração das regras de austeridade excessiva que definharam a economia europeia, impondo-a a cada um dos países da União. A regras do défice e da dívida não podem ser repetidas e perpetuadas.

Esta inesperada votação internacionalizou a geringonça. O voto de Marisa Matias (BE), de Miguel Viegas (PCP) e de Pedro Silva Pereira (PS), deputados portugueses na Comissão, permitiu uma enorme vitória política à autonomia e à admissão de alguma razoabilidade no projecto europeu. Assim perceba a Comissão Europeia que não pode haver atropelamento de tantos votos convergentes. Embora muitas dúvidas recaiam sobre a idoneidade política e moral da Comissão Europeia, Marisa Matias (relatora-sombra do documento) acredita que o Tratado Orçamental "deve começar a morrer depois deste voto". O magnífico trabalho que em tantas frentes encetou e definiu, dizem muito sobre a urgência das escolhas que teremos que fazer nas próximas eleições europeias. Aquela distância de quilómetros que nos separa do nosso metro quadrado já não existe.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 30 de novembro de 2018

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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