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A ministra fura-greves

Por estes dias, no porto de Setúbal, não se decide apenas a vida de cerca de 90 estivadores, condenados há décadas ao trabalho à jorna, sem direitos, sem proteção, sem vínculo.

Ali, naquele porto, é muito mais o que está em causa. É saber que gente somos, de que lado estamos e que país queremos ser.

Há o país dos patrões da estiva, que acham que podem tudo. Que os trabalhadores são mercadoria e carne para canhão, alugados ao dia, convocados por sms, sem proteção na doença ou na maternidade, sem direito a organizar-se e a ter direitos. No país da Operestiva (a empresa detida pelo grupo turco Yildirim, que opera no porto de Setúbal), não há negociação coletiva nem Constituição. É tanta a arrogância e a sede de dominação que, para esta empresa, mais vale um porto paralisado do que fazer um contrato coletivo. Em caso de aperto, recrutam-se ao desespero uns mercenários, paga-se umas centenas de euros a um punhado de fura-greves e negoceia-se com o Governo uma manobra para esmagar quem trabalha: autocarro de vidro-escuro para esconder a cara de quem lá vai dentro, polícia de intervenção para varrer para o lado os que, de pé ou sentados no chão com os braços dados, fazem uma barreira contra a escravatura e a falta de escrúpulos. Quem defende isto não está a pensar na Auto-Europa nem apenas em Setúbal. Quer espalhar por todo o lado o paraíso dos patrões: contratos ao dia, praças de jorna e trabalhadores amordaçados, domesticados pelo medo de haver alguém que os substitua amanhã, que lhes fique com o trabalho e o salário.

Contra este país, os estivadores. Se o porto pára quando eles páram, então é porque os precários de Setúbal, trabalhadores “eventuais” há 15 ou 20 anos, são necessários. Não vale a pena inventar: um porto não funciona com 90% de trabalhadores contratados ao dia. Isso é uma mentira. Nenhuma necessidade temporária, nenhum pico de atividade, corresponde a 90% do trabalho ao longo de 20 anos. Os estivadores de Setúbal – e o seu sindicato, o SEAL – são a voz da razão contra esta fraude escancarada. Mas são mais do que isso. São, hoje, a cara de um país que acha que o direito à greve – direito com que ganhámos as 40 horas e as férias pagas, os fins de semana e a proteção na doença e no desemprego, a educação pública e o direito à associação – não é para ser evacuado da Constituição. Resistir a este modelo de precarização que tem sido testado no setor da estiva não diz respeito apenas a eles, estivadores. A unidade da estiva aponta o caminho e é uma lição. Mas isto é com todos e todas.

Finalmente, o Governo. De que lado está? Uma operação como a de ontem, com fura-greves a entrar num porto nacional, com a mobilização da polícia para proteger a manobra da Operestiva, compromete diretamente o Governo e o PS. Não há volta a dar. É sabido o argumento formal que será utilizado: não se desrespeitou nenhuma greve porque, com contratos que acabam ao fim de cada dia, estes trabalhadores não estão, formalmente, em greve. Essa habilidade jurídica é puro cinismo: a ausência de contrato é precisamente a causa da greve. No tempo em que os sindicatos eram proibidos, os trabalhadores também paravam. Não o faziam por terem contrato e direitos. Tiveram contrato e direitos porque fizeram greves nas mesmas condições em que hoje os eventuais de Setúbal fazem, contra leis e relações de trabalho que lhes negavam (e negam hoje) esse direito.

A Ministra do Mar, Ana Paula Vitorino, tinha por isso uma responsabilidade: obrigar empresas e sindicato a sentar-se à mesa e promover uma solução para pôr a funcionar o porto de Setúbal, que passa necessariamente por um contrato coletivo de trabalho que acabe com a precariedade destes trabalhadores e das suas famílias, vinculando-os. E tem um poder enorme que pode e deve utilizar: o poder de retirar a licença de concessão a uma empresa que se revele incapaz de ter os trabalhadores necessários para assegurar o funcionamento do Porto. Em vez disso, preferiu arquitetar pela calada com essas mesmas empresas uma manobra para aniquilar a luta contra a precariedade e para atropelar o direito à greve do elo mais fraco desta história: os precários que precisam daquele trabalho para comer. É um precedente muito grave para a nossa democracia, que este Governo decidiu abrir. É uma escolha repugnante para quem tenha algum apego pela democracia, pelos direitos constitucionais e por quem vive do seu trabalho – e luta pela sua dignidade.

Artigo publicado em expresso.sapo.pt a 23 de novembro de 2018

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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