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Aquarius

Se os tempos que vivemos fossem dominados pela humanidade talvez nem fosse necessária uma petição, mas infelizmente é.

Nos dias que correm, a defesa do acolhimento de refugiados e migrantes em países da União Europeia assemelha-se a um trabalho de Sísifo. A cada afirmação segue-se um chorrilho de insultos e de insinuações. Quem lê os comentários que são deixados nas redes sociais e nos media, rapidamente percebe que os tempos mudaram. Onde se procura humanidade e boa vontade, encontra-se repulsa e xenofobia. Os direitos humanos não são, nem nunca foram, direitos adquiridos, mas defendê-los hoje é ainda uma tarefa mais urgente do que antes da crise humanitária dos últimos anos.
As mais de 17 mil vidas perdidas nos últimos cinco anos no Mediterrâneo, segundo os dados oficiais possíveis, não comovem muita gente. As vidas destruídas nos lugares de origem de quem nos procura parecem não ser um problema nosso. O lema é o que “problemas temos nós cá” e, assim sendo, ou são energúmenas ou estúpidas as pessoas que acham que podemos receber todos.

Por muito que custe aceitar, a verdade é que podíamos ter recebido, e podemos ainda, os que nos procuraram. Podíamos, e podemos ainda, deixar de ser cúmplices da barbárie que está a acontecer aqui mesmo dentro de nós. Podíamos, e podemos ainda, inverter o curso das políticas e voltar ao essencial: há pessoas a morrer, a desaparecer, a serem torturadas porque não “cai bem” defendê-las (o ódio e o medo rendem mais eleitoralmente) e porque não há vontade política.

A saga do ‘Aquarius’ II é exemplar da desumanização da vida e da política na Europa. Um navio que salvou milhares de vidas - cerca de 30 mil em dois anos e meio - e que registou e denunciou crimes cometidos contra os direitos humanos de migrantes e refugiados vê-se agora literalmente à deriva. Por pressões do governo italiano, nenhum governo se atreve a dar-lhe pavilhão. Esta semana, um grupo muito diverso de cidadãos e cidadãs portuguesas, no qual me integro, lançou uma petição para que o governo português não siga o mesmo caminho de indiferença e lhe atribua a bandeira nacional. Dizer que a solução tem de ser europeia é invocar os princípios máximos para deixar ficar os padrões mínimos. Isto quando os governos europeus continuam a apoiar financeiramente o armamento que ataca na origem ou a exploração dos recursos que faltam na origem são os mesmos que silenciam e são cúmplices deste abandono. O coordenador do Aquarius dizia esta semana ao jornal Le Monde que as maiores ameaças para as pessoas que tentam atravessar o Mediterrâneo deixaram de ser os ventos ou as ondas e passaram a ser as políticas. Se os tempos que vivemos fossem dominados pela humanidade talvez nem fosse necessária uma petição, mas infelizmente é.

Contra o silenciamento das mortes e das pessoas abandonadas à sua (falta de) sorte há ainda quem ache que, por muito impopular que seja, a luta pela defesa dos direitos humanos é a luta da nossa vida toda. Há ainda quem ache que, parafraseando José Saramago nos Cadernos de Lanzarote, há que fazer frente a quem quer privatizar o sonho, sobretudo se for diurno e de olhos abertos. Se houver vontade, nada nesta reivindicação é ilusório ou desatracado da realidade. Ilusório é achar-se que o caminho do medo e da desumanização não terá consequências. Tem já. Elas são bem notórias e não estão a fazer bem a ninguém.


Artigo publicado no Diário de Notícias, 7 de outubro de 2018

Sobre o/a autor(a)

Eurodeputada, dirigente do Bloco de Esquerda, socióloga.
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