You are here

Não foi Centeno que entrou no Eurogrupo, foi o Eurogrupo que entrou em Centeno

A social-democracia demitiu-se de uma tarefa fundamental no espaço da UE: evitar a cultura tecnocrática dominante e o esvaziamento da democracia. As recentes declarações de Centeno são uma triste imagem desta realidade.

A Europa da xenofobia e da austeridade tem futuro?”*

Tem. A questão é como evitá-lo.

Não só tem futuro, como tem muitos aliados e cúmplices. Cúmplices nas políticas racistas e xenófobas, que não precisaram de ver a extrema-direita chegar ao poder para se começarem a instalar na União Europeia, na narrativa de descredibilização do sistema político e no esvaziamento democrático da União. Quando a extrema-direita começou a chegar ao poder já lá encontrou as suas políticas. Quem irresponsavelmente acusa os extremos políticos de serem iguais, legitima e naturaliza a extrema-direita como uma alternativa democrática. A tentativa de descredibilizar as forças de esquerda não é mais do que uma preciosa ajuda à extrema-direita.

As políticas de extrema-direita entraram na União Europeia por via da social-democracia e da democracia cristã, tal como a austeridade. Conselho após Conselho, os governos anteciparam sempre a agenda da extrema-direita e consolidaram a política de austeridade como o único caminho possível. As forças políticas dominantes no espaço europeu renderam-se aos ideais neoliberais e à ideia feita de que os mercados livres se traduziriam em liberdade pessoal. Nada mais ao lado, o capitalismo e as políticas neoliberais traduzem-se em dominação e exclusão, não em liberdade. A prova dos factos está na forma como as novas gerações europeias viram negada a promessa da liberdade por via de baixos salários, precariedade, rendas altas e ausência de futuro. Os defensores dos poderes irrestritos do sector financeiro e das grandes corporações, associados a uma protecção mínima dos trabalhadores, foram longe demais no fingimento de serem os defensores da liberdade. O que, na realidade, estão a fazer é a procurar eliminar o princípio fundamental da liberdade nas sociedades actuais.

As políticas de extrema-direita entraram na União Europeia por via da social-democracia e da democracia cristã, tal como a austeridade

Em parte, a extrema-direita foi sendo alimentada pelo medo e pelas desigualdades, pela descrença na política e também pelo eleitoralismo acrítico da social-democracia, que entre perder eleitores para a direita ou perder a sua ideologia de base foi preferindo perder a ideologia, mas isso não justifica tudo. Não é apenas nas sociedades mais desiguais que cresce a extrema-direita. Nos países mais igualitários da Europa também cresceram, e muito, as forças de extrema-direita. O desemprego, a precariedade, os baixos salários justificam descontentamento face ao sistema político, mas a equação não é assim tão simples. O Estado social forte dos países nórdicos não foi tampão suficiente para impedir o crescimento do racismo e da xenofobia. A maior segurança económica em alguns países não foi sinónimo de ausência de racismo ou de “ansiedades” em relação a migrantes. As desigualdades e o abandono podem até ser condições necessárias em alguns casos, mas não são suficientes.

A história da extrema-direita organizada não é de agora

A história da extrema-direita organizada não é, como bem sabemos, de agora. A questão é: como é que voltou a ressurgir timidamente no final do século passado e começa perigosamente a alastrar no inicio deste século. Movimentos de extrema-direita estiveram fora do “sistema” durante muitos anos e só recentemente voltaram a estar representados, mas, apesar de tudo, continuam ainda a ser percepcionadas como as forças que mais fora do sistema estão e assim se continuam a vender. 

Em 1984, a Frente Nacional conseguia, em França, 11% dos votos e hoje disputa ser a primeira força política. Em 1999, o Freedom Party da Áustria ficou em segundo e formou coligação de governo com o Partido Popular austríaco (o PSD lá do sítio). Em 2002, a lista de Pim Fortuyn for a segunda nas eleições holandesas. Hoje perdemos a conta aos governos europeus dominados pela extrema-direita e aos países onde ela tem influência e marca a agenda política. Hungria, Polónia, República Checa, Itália, Áustria, Bélgica, França, Alemanha, Suécia, Holanda… Se olharmos para os programas económicos destas forças políticas há muito pouco em comum. Se na França há um programa orientado para uma redefinição da auto-suficiência  económica, na Áustria a linha é muito semelhante à da direita liberal mais convencional. Se as políticas económicas são completamente distintas, as posições sobre migrações e identitárias são muito semelhantes. O outro - seja o migrante, o refugiado, o homossexual, o não cristão - é o que justifica o alargamento de uma base identitária comum. O programa que une estas forças é restaurar uma sociedade branca, heterossexual e patriarcal. O mote é fazer uma aliança por via da exclusão.

A naturalização da política de extrema-direita na UE

Quando assistimos a uma redução drástica das chegadas de migrantes à Europa, que caíram 95% desde 2012 até agora, é quando o discurso da invasão e da ameaça começam a entrar de forma mais consolidada nos documentos oficiais

Quando assistimos a uma redução drástica das chegadas de migrantes à Europa, que caíram 95% desde 2012 até agora, é quando o discurso da invasão e da ameaça começam a entrar de forma mais consolidada nos documentos oficiais. Se olharmos para as conclusões mais recentes do Conselho Europeu encontramos as tradicionais propostas de outsourcing, mas também novas e perigosas propostas como as da criação de centros de “internamento” para os refugiados com o apoio de governos como o de Angela Merkel. As lutas internas do seu partido, motivadas pela disputa de poder com Horst Seehofer, levam à aceitação de medidas que pura e simplesmente anulam a característica mais intrínseca dos direitos humanos, a da sua universalidade. A leitura comum é a de que Merkel paga um preço político na Alemanha pelo facto de ter aberto as portas a mais de 1 milhão de refugiados, mas a verdade é que bastou Salvini ameaçar com um veto, que qualquer governo pode activar em qualquer circunstância, para que o governo alemão cedesse em toda a linha e, com ele, todos os governos europeus, incluindo o português. Da Dinamarca chegam as propostas sobre o novo pacote legislativo intitulado de “pacote do gueto”, que entre outras coisas obrigará os pais de crianças nascidas em bairros dinamarqueses com baixos níveis de rendimentos, designados por guetos, a entregar os seus filhos a partir de um ano de idade a instituições do Estado pelo menos durante 25 horas semanais, para que lhes sejam incutidos “valores dinamarqueses” entre os quais a celebração de festividades cristãs, como o Natal e Páscoa. Já tinha havido um sinal em 2015, quando nas eleições nacionais a social-democracia apresentou como programa de governo cortar nos apoios aos refugiados. E a Hungria, e a Polónia, e a Áustria, e Malta, e a Itália, tantos e tantos exemplos que todos os dias nos fazem questionar como é que em menos de um século podemos estar a pôr em risco uma das maiores conquistas civilizacionais, a da consagração e da defesa dos Direitos Humanos.

Ironicamente, a União Europeia continua a vender-se a si mesma como um exemplo nesta matéria, e disso retira “legitimidade” para intervir fora do seu espaço territorial. É à luz dos desenvolvimentos mais recentes que o inaceitável acordo com a Turquia se vai naturalizando como modelo de acção e justifica avanços para novos acordos para os mesmos fins com a Líbia, quando todos sabemos a forma como os migrantes aí estão a ser torturados e escravizados. Como se nada disto bastasse, normaliza-se também a criminalização das ONGs que operam tentando salvar migrantes que ficam à mercê da morte no Mediterrâneo, onde este ano, o ano de menor afluência desde 2012, já morreram 1549 pessoas.

A social-democracia falhou o projecto de travar a extrema-direita. Seremos nós capazes de fazê-lo?

A Europa dos vencedores e vencidos, a Europa das desigualdades foi o modelo de normalização obtido com a desistência da social-democracia

A Europa do mercado único e da livre circulação de capitais, a Europa do dumping, a Europa dos vencedores e vencidos, a Europa das desigualdades foi o modelo de normalização obtido com a desistência da social-democracia. Os desequilíbrios macro-económicos passaram a ser a identidade da União. O que restou de esquerda à social-democracia europeia foram generalidades que qualquer liberal também diz. Generalidades em cima do abandono dos serviços públicos e da protecção do trabalho. A social-democracia demitiu-se, assim, de uma tarefa fundamental no espaço da União Europeia: evitar a cultura tecnocrática dominante e o esvaziamento da democracia.

As recentes declarações de Centeno a propósito da conclusão do programa de ajustamento na Grécia são uma triste imagem desta realidade. Tal como previsto, não foi Centeno que entrou no Eurogrupo, foi o Eurogrupo que entrou em Centeno, e o seu programa nunca foi outro senão o da austeridade. Se limites houve à austeridade em Portugal nos últimos anos foi pelas imposições da esquerda portuguesa e, em particular, do Bloco de Esquerda. Se dependesse do programa de Centeno ainda estaríamos em ajustamento permanente. A Europa sem austeridade de que falou António Costa em Itália é uma ficção. Pelo menos, Centeno não finge.

Ora, com o crescimento e a normalização de extrema-direita e a proliferação de fake news assistimos a um outro fenómeno. O espaço político converteu-se num campo de batalha e a agressão substitui o debate de ideias. Uma coisa parece evidente nestes desenvolvimentos recentes: não é possível derrotar os populistas em termos de populismo, esse é o seu campo. Resta-nos, por isso, não sair da política.

A política populista é a política de sarjeta, a do quanto pior melhor, a do ataque e do aprofundamento da divisão, a do medo e do ressentimento

A política populista é a política de sarjeta, a do quanto pior melhor, a do ataque e do aprofundamento da divisão, a do medo e do ressentimento. A extrema-direita ganhou espaço com a promessa de segurança num mundo fora de controlo. As mensagens são muito claras: é preciso restabelecer a ordem e o controlo, oferecer respostas simples para problemas complexos, separar pessoas de acordo com a sua “cultura”, origem ou religião e delimitar bem os espaços de cada um, em suma, e como já referi, restaurar uma sociedade branca, heterossexual e patriarcal. 

É este programa que tem permitido fazer alargar a aliança chauvinista no espaço europeu, o que em si mesmo seria, em tempos normais, uma contradição nos termos. A recente aliança entre Salvini e Órban é disso exemplar: Salvini quer os restantes países da UE recebam os migrantes que chegam a Itália; Órban quer que nenhum migrante entre na Hungria. Esta aparente contradição só é explicável pelo que os une: fazer aliança por via da exclusão. É certo que, para ambos, melhor seria deixar os migrantes a morrer no Mediterrâneo ou que nem sequer aí chegassem.

Se é certo que temos de voltar ao essencial - democracia, trabalho, Estado social - também me parece cada vez mais evidente que para derrotar a extrema-direita é preciso muito mais do que economia. Falar de futuro é preciso. São precisas novas narrativas de identidade colectiva que abarquem o pluralismo. Há milhões de pessoas que não se revêem nas políticas dominantes da UE e que não são racistas, que têm medos e que esses medos não significam abandonar os direitos das minorias, os direitos sexuais ou os direitos religiosos.

É também necessário trabalhar a sério numa recuperação de soberania que seja progressista. Se se considerar à partida que as pessoas que se consideram patriotas são de extrema-direita estamos perdidos. Alianças internacionalistas democráticas e que salvaguardem a soberania são não só possíveis como necessárias. E isso implica uma aliança alargada de sociedade.

Recusamos o maistream actual e acreditamos que não há apenas uma escolha simples entre o status quo e a barbárie da extrema-direita. A escolha hoje é outra Europa

A social-democracia está a ser pulverizada pela obsessão pela União Europeia tal como ela existe hoje, a União Europeia do dumping. Recusamos o maistream actual e acreditamos que não há apenas uma escolha simples entre o status quo e a barbárie da extrema-direita. A escolha hoje é outra Europa. Talvez um dia tenhamos uma Europa democrática. Uma condição essencial para isso é não abandonarmos nenhum espaço de luta e reforçarmos as democracias nos espaços nacionais com agendas progressistas que recusam fatalismos. A Europa da xenofobia e da austeridade tem futuro? Tem. Mas há outros futuros possíveis. E desses não podemos abdicar. Eles incluem direitos sociais, onde a austeridade cavou mais fundo, e cultura humanista apoiada em colectivos não amedrontados. Esses outros futuros são a razão da nossa luta, dia após dia, sem nunca desistir.

* Texto de abertura do Fórum Socialismo 2018, no debate “A Europa da xenofobia e da austeridade tem futuro?”, que teve lugar a 31 de agosto de 2018

Sobre o/a autor(a)

Eurodeputada, dirigente do Bloco de Esquerda, socióloga.
(...)