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Onde pára a maioria?

A Esquerda nunca faltou à maioria para nenhum progresso nem nunca se pôs de lado de nenhum processo negocial. Resta saber se o PS pretende, em cada uma destas matérias, falar com a Esquerda ou faltar à Esquerda.

Desde o seu Congresso, dirigentes do PS e membros do Governo têm-se multiplicado em declarações contraditórias sobre o caminho que pretendem. Nalguns casos, elas são a expressão normal das contradições existentes no próprio Governo e no Partido Socialista, entre os que defendem convictamente a solução política que existe (como Pedro Nuno Santos, por exemplo) e os que, como Santos Silva, por exemplo, anseiam regressar ao lugar de onde verdadeiramente nunca saíram e libertar-se rapidamente de qualquer compromisso com a Esquerda. Se fosse apenas uma troca de declarações, seria interessante mas pouco relevante. Mas este ziguezague é a expressão de uma confusão em torno de escolhas políticas concretas, que aliás põe em causa a consistência e a coerência da atual maioria. Se a ideia do Governo é essa – pô-la em causa, para reconstruir o centrão –, então é uma boa estratégia. Mas seria, sobretudo, uma irresponsabilidade que fosse por esse caminho. Há muitas escolhas para fazer e muitos problemas para resolver.

Um exemplo: a legislação laboral. Independentemente das divergências que sempre existiram entre o Partido Socialista e a Esquerda, tinha sido possível chegar a um acordo, depois de quase dois anos de reuniões de um Grupo de Trabalho, entre Bloco, PS e Governo, com medidas importantes para limitar abusos nos contratos a prazo e no trabalho temporário. Depois, é o que se sabe: à revelia da Esquerda, o Governo acordou com as confederações patronais um conjunto de medidas de sinal contrário para esvaziar e mitigar o que tinha negociado com o Bloco. Acontece que a proposta de lei laboral do Governo ainda não foi votada. Está o PS disponível para, no Parlamento, concertar-se com a Esquerda na especialidade? Está o PS disponível, por exemplo, para anular as normas suscetíveis de serem declaradas inconstitucionais, como o alargamento do período experimental para 180 dias? Para eliminar da proposta o alargamento a todos os sectores de contratos orais sem invocação formal de motivo nem direito a compensação? Ou para garantir que a questão do banco de horas é reenviada para a esfera da negociação coletiva? Está o PS disponível para voltar a negociar à Esquerda, ou vai ser apenas o eco parlamentar das medidas impostas pelos patrões na concertação social?

Outro exemplo: o Serviço Nacional de Saúde. António Arnaut e João Semedo, duas figuras exemplares cuja vida simboliza o compromisso com o SNS público e universal, deram um exemplo de generosidade e de diálogo, propondo em conjunto uma nova Lei de Bases, com o objetivo de salvar o SNS e reverter a sangria de recursos públicos para o negócio privado na saúde. O Governo, que marcou presença na apresentação da proposta, apressou-se a criar uma Comissão presidida por Maria de Belém Roseira para fazer uma outra proposta de Lei de Bases, amiga dos grupos privados (com os quais, de resto, Belém mantém uma relação íntima) , capaz de travar a Lei Arnaut/Semedo. O PS quer mesmo deitar por terra a possibilidade de negociar uma lei à Esquerda, para negociar à Direita uma lei que tenha o apoio de quem descaracterizou o SNS e protege interesses particulares de grupos económicos da área da saúde? É esse o caminho que escolhe?

Os exemplos são muitos. Depois de ter repetido, a propósito de assuntos tão diversos como as carreiras dos professores, as pensões antecipadas, a meta de 1% para a Cultura ou a renovação de equipamento para hospitais que “não há dinheiro”, o Governo descobriu subitamente uma disponibilidade de desembolsar mais 4 mil milhões em despesas militares, para ir de encontro à exigência da NATO e à pressão de Trump de gastar 2% do PIB (do PIB, não é sequer do Orçamento!) em defesa. Num país que dedica à Cultura, por exemplo, 0,1%, ou seja, 20 vezes menos.

Ao longo destes últimos meses, a Esquerda tem estado onde sempre esteve: não cala as suas posições nem abdica das suas propostas sobre cada assunto, mas nunca faltou à maioria para nenhum progresso nem nunca se pôs de lado de nenhum processo negocial. Resta saber se o PS pretende, em cada uma destas matérias, falar com a Esquerda ou faltar à Esquerda.

Publicado em expresso.sapo.pt a 13 de julho de 2018

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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