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As fronteiras da humanidade?

"Nenhum ser humano é ilegal." A frase é de Elie Wiesel, vencedor do Prémio Nobel da Paz de 1986, judeu nascido na Europa que sofreu na pele o nazismo e esteve detido em Auschwitz.

Será que aprendemos com a nossa história? Vejamos três exemplos de regressos ao passado:

1 - A semana começou com a divulgação de um vídeo de sete minutos que deu a conhecer o horror da política de separação familiar de Donald Trump. Sem imagem, um fundo negro, apenas o som de crianças a chorar compulsivamente. Ouve-se uma voz, uma criança chama pelo pai, soluçando. Ele não está, foi levado. Outro clamor, agora pela mãe - também foi levada, já não está ali.

As famílias fogem da Guatemala, de El Salvador, do México. Vão à procura de melhores condições de vida e o que lhes fazem? Separam famílias, destroem-nos, tiram-lhes tudo. As crianças pedem para ir para casa, para falar com familiares, mas nada lhes é permitido. Estão longe de casa, num outro país, a dormir no chão, presas em jaulas. Sozinhas no mundo, rodeadas de guardas. Os seus pais são tratados como criminosos, prendem-nos se tentam atravessar a fronteira. É desumano: separam as crianças dos seus pais e mães e elas ali ficam, entregues a si. Donald Trump disparou no Twitter que "os imigrantes vinham para infestar o país".

2 - De Itália chegou, dias depois, o mesmo cheiro bafiento reacionário e xenófobo. O líder da Liga Norte, e atual ministro do Interior de Itália, propôs recensear as pessoas de etnia cigana para expulsar quem esteja em situação irregular. Quanto aos "ciganos italianos", Matteo Salvini lamentou: "Infelizmente, teremos de ficar com eles porque não os podemos expulsar."

Esta ação do governo italiano acontece depois de negar a entrada do barco Aquarius, da Organização não Governamental SOS Mediterranée, nos portos italianos. É a aplicação da sua primeira mensagem ministerial, "acabou a festa para os imigrantes clandestinos". O Aquarius transportava 629 imigrantes provenientes de seis diferentes operações de salvamento, entre as quais 123 menores não acompanhados, 11 crianças e sete grávidas.

3 - Exatamente no Dia Mundial dos Refugiados, o Parlamento da Hungria aprovou um pacote legislativo para criminalizar o auxílio a quem entre no país sem documentos legais - mesmo que para pedir asilo. O ministro do Interior do governo de Viktor Orbán justificou: "Queremos usar estas leis para impedir que a Hungria se torne um país de imigrantes."

Já antes o governo húngaro tinha construído muros nas fronteiras e aprovado uma emenda constitucional que afirma que "uma população estrangeira não pode fixar-se na Hungria".

Os três exemplos apresentados demonstram a dimensão da desumanização que está a ocorrer rapidamente. Presidentes, dirigentes, governos ou partidos estão a defender ou a aplicar políticas reacionárias, xenófobas ou racistas

Os três exemplos apresentados demonstram a dimensão da desumanização que está a ocorrer rapidamente. Presidentes, dirigentes, governos ou partidos estão a defender ou a aplicar políticas reacionárias, xenófobas ou racistas. As fronteiras que tínhamos estabelecido para impedir a desumanização das sociedades estão a ser erodidas. O que fazer para escapar desta agenda da intolerância e da perseguição? Como vencer a luta com estes fantasmas do passado que se querem fazer novos?

Comecemos pelo que nos identifica, tomando exemplo nas palavras do nosso poeta cientista António Gedeão: "Minha aldeia é todo o mundo. Todo o mundo me pertence. Aqui me encontro e confundo com gente de todo o mundo que a todo o mundo pertence. (...) Longas raízes que emergem, todos os homens convergem no centro da minha aldeia."

Continuemos com o que nos dá poder: a democracia. Radical, profunda, verdadeira. A escolha que não permitimos que nos retirem ou anulem. Num mundo em que as multinacionais têm mais poder do que alguns governos, em que a União Europeia rejeita ouvir os seus povos, em que os governos são mais submissos à elite económica do que à vontade das populações, a luta por esse poder de decisão é fundamental.

Defendamos o que nos une: solidariedade, direitos universais e igualdade. Estados sociais que nos dão garantias a todos, sem discriminações ou barreiras.

Concluamos com a nossa força, a mobilização social. Dos três horríveis exemplos dados, já conseguimos vencer um pela mobilização mundial. Trump já teve de recuar na sua política de separação familiar e garantir que mais nenhuma criança é separada de seus pais. Que esta vitória nos dê o alento necessário para as exigentes lutas que se avizinham.

Artigo publicado no “Diário de Notícias” a 21 de junho de 2018

Sobre o/a autor(a)

Deputado, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, matemático.
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