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Não falhar de novo

Não falhar de novo é parar o empobrecimento do interior e mudar a floresta. É não ceder à armadilha dos interesses.

A preocupação com as pessoas, as famílias e as comunidades que sofreram diretamente os efeitos dramáticos dos incêndios rurais de há um ano foi o que nos marcou e continua a ser o essencial. Ainda nos recordamos de como foi difícil no caso da queda da ponte de Entre-os-Rios, em 2001, onde morreram 59 pessoas. O luto psicológico e o sofrimento físico perdurarão por muito tempo.

Em Pedrógão Grande, Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos a escala da tragédia atingiu uma dimensão inimaginável e insuportável. O país, incrédulo, não estava preparado. Ficou a nu que as estruturas de socorro, de apoio social e de solidariedade tinham sido debilitadas ao longo dos últimos anos e as populações dos concelhos do interior desprotegidas, entregues a si próprias, sem mais.

Sempre que fecha um serviço no interior, sempre que o parco investimento público discrimina negativamente aqueles territórios, os responsáveis desdobram-se em justificações estatísticas. Despovoamento, envelhecimento, baixa densidade, abandono… Mas têm sido as medidas justificadas com aqueles argumentos que produzem os próprios argumentos e o seu agravamento. Um verdadeiro ciclo vicioso.

Todos sabemos das mudanças estruturais ocorridas nos territórios rurais e ninguém prevê ou deseja uma espécie de regresso aos campos. O que temos de exigir a um Estado que se leve a sério é que não vire as costas a uma parte da sua população e a cerca de 2/3 do seu território.

Foi o que aconteceu, o Estado mínimo falhou. Com uma quase ausência de aplicação de políticas públicas para um novo modelo de desenvolvimento para o rural e o interior, e não se conhecem sinais claros de mudança, é significativo que o debate sobre o interior, até aos incêndios de 2017, tivesse sido marcado pela redução dos serviços públicos, pela colocação de portagens nas ex-SCUTs e pelo aumento da emigração.

Ou seja, de facto as políticas públicas para o interior até existiram, mas para incrementar os fatores que conduziram a cada vez maiores dificuldades demográficas e económicas. Menos despesa, menos investimento, mais empobrecimento das populações, mais desemprego, mais abandono. Veja-se o caso da floresta e a situação caótica em que se encontra, causa mais próxima da onda de incêndios devastadores.

O país está confrontado com territórios ocupados em grande percentagem por povoamentos florestais contínuos e densos, com grande presença de espécies de elevada inflamabilidade, e uma enorme dispersão da propriedade. São necessárias novas políticas de ordenamento e gestão florestal que reduzam as vulnerabilidades existentes e preparem esses espaços para eventos climáticos extremos.

Porém, há 20 anos que temos uma Lei de Bases da Floresta, aprovada por unanimidade, considerada tecnicamente competente, mas nunca devidamente aplicada. O Estado demitiu-se de a aplicar, falhou novamente, e abriu todo o espaço para que a fileira da celulose passasse a ser o principal ator na floresta, impulsionada pela liberalização da plantação do eucalipto e pelo mito, nunca contrariado, de que a floresta rentável era a do eucalipto. O resultado está à vista.

Agora, depois da vaga de incêndios, o Governo concentrou-se nas medidas para a limpeza das faixas de gestão de combustível para tentar minimizar o potencial de novos desastres. Compreende-se a prioridade, mas a política está errada porque, mais uma vez, se demitiu de assumir a principal responsabilidade. Em vez de integrar este processo numa política de ordenamento e gestão florestal (onde anda o ICNF para promover essa campanha?), impõe aos pequenos proprietários e às autarquias, ambos com falta de meios e de tempo, o que só pode ser feito com escala, planeamento, investimento e participação.

Pensar que as urgências do interior e da floresta se resolvem dessa forma, é a verdadeira armadilha que tem feito o país gastar milhões todos os anos em meios de combate aéreos e terrestres e a falhar consecutivamente. Não falhar de novo é parar o empobrecimento do interior e mudar a floresta. É não ceder à armadilha dos interesses.

Sobre o/a autor(a)

Docente universitário IGOT/CEG; dirigente da associação ambientalista URTICA. Dirigente do Bloco de Esquerda
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