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O flop na lei laboral

O Governo acaba de, na prática, propor o esvaziamento de grande parte das medidas de combate à precariedade que tinha acordado à sua Esquerda.

Há cerca de dois anos, o Governo encetou um processo de negociação de um Plano Nacional de Combate à Precariedade, tal como constava do acordo feito com o Bloco. No Grupo de Trabalho criado para o efeito foi possível, depois de um ano e meio de reuniões, chegar a acordo sobre um conjunto de propostas de combate aos contratos a prazo e a alguns princípios de limitação do trabalho temporário. Entretanto, foi-se tornando visível que, relativamente a outras matérias essenciais, como a reversão dos cortes feitos pelo PSD/CDS nas férias (de 25 para 22 dias), no valor das horas extra (cujo acréscimo remuneratório foi cortado para metade), no descanso compensatório por trabalho suplementar (eliminado pela Direita), nas compensações por despedimento (reduzidas a menos de metade do valor), o PS e o Governo não tinham vontade de mexer no legado da Direita. Também na contratação coletiva, a inércia e a manutenção do desequilíbrio de fundo atualmente existente (que resulta da possibilidade de os empregadores fazerem caducar unilateralmente uma convenção coletiva) pareciam ser a orientação do Governo.

Depois de um congresso em que o primeiro-ministro lançou um apelo para que o país se concentrasse no combate à precariedade e para que houvesse medidas de conciliação entre a vida pessoal e familiar e o trabalho, acaba de dar um sinal em sentido contrário

Em março, o Governo apresentou finalmente a sua proposta de alteração ao Código de Trabalho na concertação social. Ela incluía as medidas positivas negociadas para limitar os contratos a prazo e concretizava um princípio de limitação do trabalho temporário. Ao mesmo tempo que avançava no combate à precariedade, confirmava-se que, relativamente às outras matérias (horas extra, férias, despedimentos, contratação coletiva, turnos), o Governo era omisso e conservador: não queria mexer em nada de substancial do que tinha sido feito pela Direita.

Na duas últimas semanas, esta orientação mudou para pior. Para alcançar um acordo com os patrões, o Governo negociou um conjunto de normas que, habilidosamente, esvaziam as alterações de combate à precariedade que tinham sido negociadas. Ou seja, depois de acordar com a Esquerda medidas para fechar a porta à precariedade dos contratos a prazo, o Governo negociou com os patrões (com anunciada satisfação da Direita) um conjunto de janelas para a fazer entrar de outro modo. O que chamar a isto se não um flop que mina a credibilidade da própria proposta e das intenções anunciadas?

1. Dar com uma mão e tirar com a outra: a contrapartida patronal para a limitação dos contratos a prazo

Uma das matérias acordadas com o Bloco relativas à limitação aos contratos a prazo era acabar com a exceção que permitia contratar a prazo, mesmo para funções permanentes, desde que se tratasse de jovens à procura do primeiro emprego ou desempregados de longa duração. Acabar com essa exceção é correto: não é atribuindo um estatuto laboral de segunda categoria que se promove o emprego destes grupos. Mas, à margem do acordo que havia feito à Esquerda, o governo introduziu à ultima da hora, sob pressão dos patrões, duas vias para que as empresas possam contornar esta restrição: i) propõe alargar o período experimental destes grupos de trabalhadores de 90 para 180 dias; ii) propõe alargar os fundamentos e a duração máxima dos contratos de muita curta duração, que não estão sujeitos a forma escrita, não estão cobertos pelo Fundo de Compensação do Trabalho e cuja duração se pretende que seja mais do que duplicada (era uma semana até 2012, passou a 15 dias com a Direita, agora o PS propõe que possa ir até 35 dias), além de se indicar que podem ser utilizados noutros sectores para além da agricultura e turismo. Disse João Galamba, deputado do PS, que é melhor o período experimental do que os contratos a termo, que podiam ir até 3 anos. Esqueceu-se de dizer que, no período experimental o despedimento é livre, não requer aviso prévio nem dá direito a qualquer compensação, o que é ilegal no caso do contrato a termo.

2. O esvaziamento da taxa de rotatividade

A taxa da rotatividade é outro exemplo de como esvaziar totalmente uma medida até só ficar, praticamente, o nome. Inicialmente, o debate partiu de uma norma, que já consta da lei mas não está em vigor, através da qual a TSU patronal dos contratos a termo poderia ser agravada até 3%. Mas, para ir de encontro aos interesses dos patrões, o Governo introduziu, sucessivamente, formas de anular o efeito e a eficácia desta medida. Como? Começou por estabelecer que a taxa era de 2% no máximo, e que o seu valor seria progressivo em relação ao afastamento da média da rotatividade utilizada pelas empresas; depois propôs que não abrangesse todos os contratos a prazo, mas apenas os que se afastassem da média de cada setor (por exemplo, no turismo, onde a média da rotatividade é muito alta, se todas as empresas tiverem a mesma média, nenhuma paga); a seguir, aceitou que os contratos considerados para aferir esta rotatividade eram reduzidos ao mínimo: ficam excluídos, além dos contratos temporários, (i) os contratos a prazo para substituir trabalhador em licença parental ou de doença superior a 30 dias, (ii) os contratos de muito curta duração, (iii) os contratos “obrigatoriamente celebrados a termo por imposição legal” e (iv) todos os contratos a prazo celebrados “pelos condicionalismos inerentes ao tipo de trabalho ou à situação do trabalhador”. Fica a pergunta: com tantas exceções, há alguma empresa que vá pagar a taxa? Tendo em conta a satisfação dos patrões, nomeadamente do turismo e da agricultora, dir-se-ia que não.

3. A regressão no banco de horas fora da contratação coletiva

Quando o PS, pela mão do Ministro Vieira da Silva, criou os bancos de horas, em 2009, submeteu-os à contratação coletiva. A Direita fez uma alteração ao Código do Trabalho, em 2012, em que instituiu o banco de horas individual, e criou um banco de horas grupal que se poderia impor ao conjunto dos trabalhadores de uma secção desde que 75% tivesse aceitado o banco de horas individual ou que 60% estivesse abrangido por um instrumento de regulamentação coletiva que o previsse. O argumento de Vieira da Silva para eliminar o banco de horas individual foi sempre o da necessidade de o remeter para a negociação coletiva. Mais: o Governo apresentou várias vezes a proposta do fim do banco de horas individual como um mecanismo de incentivo às entidades empregadoras para se envolverem na negociação coletiva. O documento entregue na Concertação Social a 23 de março dizia o seguinte sobre a matéria (e apenas isto): “o Governo propõe: Reservar para a negociação coletiva a adoção do banco de horas”. Mas entre março e maio, o Governo mudou de orientação e, sob pressão dos patrões, passou não só a incluir o período transitório de um ano para acabar com o banco de horas individual mas a prever uma nova figura de banco de horas por “acordos de grupo a alcançar através de consulta aos trabalhadores”, fora da contratação coletiva, bastando o acordo de 65% dos trabalhadores de uma “equipa, secção ou unidade económica”. Esta medida, que foi uma das mais celebradas pelos patrões como uma vitória sua, permite assim manter os bancos de horas contornando a contratação coletiva.

4. As exceções no trabalho temporário

O caso do trabalho temporário também é revelador da mudança de orientação do Governo. Depois de negociar com o Bloco o princípio da limitação do número de renovações (o Bloco propôs três, por analogia com os contratos a prazo), o Governo concretizou a limitação em seis, mas cedeu à chantagem patronal e propõe acrescentar a essa norma uma alínea que lhe retira abrangência. Afinal, a limitação não se aplica sempre que estiver em causa “a substituição direta ou indireta de trabalhador ausente ou que, por qualquer motivo, se encontre temporariamente impedido de trabalhar”.

Em suma: para além daquilo em que não quer mexer (e que é muito importante), o Governo acaba de, na prática, propor o esvaziamento de grande parte das medidas de combate à precariedade que tinha acordado à sua Esquerda, retirando-lhes eficácia por via de normas imaginativas acordadas com as entidades patronais. Depois de um congresso em que o primeiro-ministro lançou um apelo para que o país se concentrasse no combate à precariedade e para que houvesse medidas de conciliação entre a vida pessoal e familiar e o trabalho, acaba de dar um sinal em sentido contrário. A manutenção deste desequilíbrio profundo introduzido nas relações laborais (por via destes bancos de horas, das regras existentes no trabalho por turnos e noturno, dos cortes no trabalho suplementar, das alternativas de precarização) só tem um efeito: manter na prática aquilo que, discursivamente, se critica.

Artigo publicado expresso.sapo.pt a 1 de junho de 2018

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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