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A tempestade perfeita em Itália

A República italiana está transformada numa caixinha de surpresas ou casa de horrores, conforme a benevolência da análise.

Depois do suspense sobre se o presidente italiano, Sergio Mattarella, daria ao Movimento 5 Estrelas (M5S) e à Liga a hipótese de formar governo, eis que a volte-face apanhou todos de surpresa: o presidente vetou a indicação de Paolo Savona para ministro da Economia. Com esse veto presidencial, o país precipitou-se em nova crise política, tendo o M5S e a Liga apelado à realização de novas eleições. Por tudo isto, o texto que escrevi na semana passada merece uma atualização.

Convém não esquecermos que Mattarella não foi eleito pelo povo, pois em Itália a escolha do presidente da república não resulta de eleição direta. Independentemente das escolhas individuais de Savona, publicamente reconhecido como um crítico das instâncias europeias e da estrutura da zona euro, é altamente questionável a legitimidade com que o seu nome foi vetado face à vontade popular expressa nas urnas.

A escolha seguinte de Mattarella é, novamente, altamente criticável: propôs a criação de um governo de iniciativa presidencial tendo por primeiro-ministro Carlo Cottarelli, um ex-diretor do FMI. O resultado será a criação de um governo de tecnocratas que nunca terá aprovação parlamentar. Nesta escolha, a vontade popular é duplamente traída: por um lado, um dos grandes motivos populares de descontentamento é a recorrência de governos tecnocráticos; por outro lado, a escolha é para continuar a política de austeridade que tinha sido rejeitada nas eleições.

Ora, quando se vira as costas ao povo, não é de admirar que o povo faça o mesmo. O exemplo disso é que, com esta trapalhada, as sondagens indicam que o M5S continua como o partido mais votado, com mais de 30% e a Liga sai reforçada, com as intenções de voto a ultrapassarem já os 25%. Com as eleições inevitavelmente a assumirem o horizonte, o tiro presidencial parece sair pela culatra.

"Os mercados vão ensinar os italianos a votar bem." A frase foi atribuída ao comissário europeu do Orçamento, Günther Oettinger, difundida numa rede social e até partilhada pelo próprio comissário. A frase foi desmentida, depois de ter causado a confusão generalizada. O comissário exigiu que fosse corrigida para a suposta afirmação textual: "A minha expectativa é que as próximas semanas mostrem desenvolvimentos nos mercados, títulos e economia com tantas consequências que talvez isso se torne num sinal para os eleitores não entregarem responsabilidades aos populistas". A correção não esconde o absurdo do pensamento: apelar à ira dos mercados para aplacar a vontade do povo.

As declarações incendiárias de Oettinger mostram a prepotência e a arrogância europeia. No contexto italiano, em que a extrema direita tem baseado a sua campanha numa afirmação nacionalista, o resultado foi o de atirar gasolina para a fogueira. Para a campanha da LN esta sequência de acontecimentos encaixa-se que nem uma luva na narrativa eleitoral que tinha criado, o que explica facilmente o seu rápido crescimento nas sondagens. Mais uma vez, é esta construção europeia, com os seus executores e súbditos, que promove o crescimento da extrema-direita.

Ouvir do governo português "todos esperamos que o presidente Mattarella consiga pôr de pé um governo que seja pró-europeu e estável" demonstra que já se esqueceram de 2015. Nessa altura, era António Costa quem se indignava perante palavras similares de Cavaco Silva e defendia a legitimidade para governar. Mudam-se os tempos...

Face à tempestade italiana, o primeiro-ministro português apelou também à conclusão da reforma da zona euro. Aproveitou a visita de Angela Merkel a Portugal para reforçar essa ideia e a apresentar como solução a este avanço do populismo. Fuga para a frente? Claramente.

É de notar que a ideia da "reforma da zona euro" já tem sido muito propagandeada por António Costa. Contudo, o tema nunca foi verdadeiramente aprofundado, nem António Costa apresentou em concreto as suas ideias. Veja--se, aliás, como o tema não mereceu qualquer referência de destaque no recente congresso do PS.

Os momentos em que podemos vislumbrar algumas ideias de António Costa para as reformas do euro são, apenas, em concordância com a agenda do presidente francês, Emmanuel Macron. Esse pensamento, diga-se, inclui a criação de um orçamento comum e o caminho para a existência de um ministro das Finanças europeu, retirando poder e soberania orçamental aos parlamentos nacionais.

As propostas de reforma do euro significam mais uma derrota da democracia, espezinhada pela tecnocracia. É apadrinhar a aus-teridade, para fragilizar os serviços públicos.

Artigo publicado no “Diário de Notícias” a 31 de maio de 2017

Sobre o/a autor(a)

Deputado, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, matemático.
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