You are here

“Museu das Descobertas” porquê, para quê

Na sequência de uma proposta eleitoral do PS tem-se vindo a discutir a pertinência, ou não, da criação de um “Museu das Descobertas”.

O nível mais básico da discussão seria o da pertinência de um museu centrado nas “descobertas” (o meu professor de História da Expansão, Alexandre Lobato seria logo contra o galicismo da palavra) ou o de algum reforço/coordenação de museus existentes, como defende Diogo Ramada Curto. Mais interessante tem sido a discussão sobre o próprio fenómeno da Expansão (nunca suficientemente discutido) e a construção e finalidades da História. Uma proposta que seria sobretudo para turista ver acaba por gerar uma discussão interessante.

600 anos (se contarmos a partir da conquista de Ceuta em 1415) é muito tempo e muita coisa que como os trinta heterónimos do Pessoa não vão caber nos Jerónimos. A celebração das “descobertas” trouxe-nos o melhor e o pior, os Jerónimos e o Padrão dos Descobrimentos estão bem próximos, mas se o primeiro era uma celebração “em tempo real”, o segundo é o uso da história como legitimação de um nacionalismo ditatorial.

A legitimação pela expansão tem sido, aliás uma constante portuguesa desde (pelo menos) Camões que ganhou nova força no final do século XIX, já haveria um movimento ideológico de “regresso a África” antes da conferência de Berlim em 1875. Foi essa legitimação que levou a 1890 (como seria Portugal amputado de parte das colónias que pretendia ter com o Mapa-Cor-de-Rosa), à República e à 1ª Guerra Mundial. Curiosamente não foram as colónias a determinar o golpe de estado de 1926, mas toda a ideologia da expansão se tornou fundamental para o Estado Novo. É a altura da “Exposição do Mundo Português”, mas já antes em 1931 tinha havido uma Exposição Colonial no Porto. As palavras de Henrique Galvão (esse mesmo, o do assalto ao St.ª Maria) na inauguração dessa exposição são sintomáticas: “os homens da minha geração vieram ao Mundo dentro de um país pequeno. Felizmente vê-se que pretendem morrer dentro dum império”. Anos mais tarde, e já em plena Guerra Colonial, temos o mapa “Portugal não é um país pequeno” que pretende demonstrar que com as colónias (então já Províncias Ultramarinas) Portugal era um país maior que os seus vizinhos europeus. Esta obsessão com o “Portugal Maior” tem algo psicológico o slogan foi de Cavaco Silva nas eleições presidenciais.

Entretanto é a questão expansão que leva à viragem da historiografia portuguesa. Magalhães Godinho em “Os Descobrimentos e a Economia Mundial” vê na economia o motor da expansão. Uma visão que abala o próprio regime. Magalhães Godinho estava exilado, apareceu um registo de um interrogatório de Borges Coelho em que era acusado de com esta visão estar a trair Portugal. Mais recentemente tem-se explorado outras realidades da expansão, a escravatura, as relações raciais, a continuidade além dos períodos dourados…

O post 25 de Abril e, em especial a vaga comemorativa dos anos 90 trouxeram uma nova forma de ver a expansão. Sabíamos das questões económicas, do saque, da escravatura, estes aliás tinham estado presentes até há bem pouco, mas agora havia uma visão mais rosada. O encontro de culturas. É o espírito da Expo, com a sua pitada de lusofonia e luso centrismo.

Também podia ser o espírito que presidia a esta nova ideia, mas agora com mais azulejo, mais carro elétrico, mais lata de sardinhas, enfim mais para consumo externo que interno. A ideia já andava no ar em 2010, altura em que o CDS sai à luta, contrariando a ideia de integração do Museu de Marinha neste novo museu. Matilde Sousa Franco aproveita este ano em que se comemorariam o centenário do descobrimento de Porto Santo (note-se que a conquista de Ceuta ficou esquecida) para falar no “Museu da Interculturalidade de Origem Portuguesa” não reparando sequer na contradição da expressão.

Muito significativo foi o abaixo-assinado em que uma centena de académicos se manifestavam contra o “Museu das Descobertas”, sublinhando (e bem) o erro da palavra “descobertas” que em geral é aplicada a locais que eram habitados (exceto à Índia, para onde se descobriu o “Caminho Marítimo”). Muito recentemente um novo abaixo-assinado de “agentes culturais” aponta no mesmo sentido: “Em repúdio de uma história anacrónica que assuma um ponto de vista unívoco e glorificador, o qual tem vindo a ser contestado em fundamentadas reformulações por múltiplas investigações académicas nacionais e internacionais, apoiamos a urgência da revisão dos termos ”descoberta”/“descobrimentos” e outros eufemismos (“primeira globalização”, “viagem”, “diáspora”, “interculturalidade”, “mar”, “lusofonia”) como o primeiro passo para uma discussão mais ampla e plural”.

No alto da sua ignorância, Miguel Sousa Tavares ataca o primeiro manifesto, confessando desconhecer os signatários e não ter encontrado grandes referências à escravatura quando preparou um romance sobre o assunto (como é habitual estudou pouco, o que fica mal a quem chama ociosos aos investigadores), terá encontrado seguramente muitos sobre o Adamastor subentendido na sua glorificação da epopeia. Um discurso não muito diferente do de Nogueira Pinto e o movimento “Nova Portugalidade” (que entre outros tem esse enorme vulto da cultura, D. Duarte) que atacam o “politicamente correto”. Claro que querem um museu em que escravatura ou opressão não têm lugar pois isso permitiria: “em lugar de templo de anti-portuguesismo e difamação, instituição patriótica e comprometida com o estudo e exibição da civilização portuguesa”. Isto é épico e glorioso.

Temos aqui três caminhos, o caminho comemorativo e de “orgulho nacional”, o da “interculturalidade de origem portuguesa” cheio de eurocentrismo e enganador. Há um outro caminho que permite a reflexão e aprendizagem sobre 600 (e não 200 ou 300) anos de expansão e império. Um que possa começar na conquista de Ceuta e terminar nas guerras coloniais, na independência de Timor ou na entrega de Macau. Ângela Barreto Xavier defende que seguindo-se este último caminho não se poderá chamar “Museu das Descobertas”. As palavras dão significado às coisas, e as “descobertas” apontam no caminho da comemoração e do “orgulho nacional” que até tem como reverso o decadentismo do “tão grandes que fomos”. Ao contrário do discurso “anti politicamente correto”, este é um caminho de conhecimento, não de auto-flagelação.

Cada um terá a sua memória da expansão, a minha são sobretudo duas fotografias: O meu avô paterno em traje colonial com um pequeno crocodilo na Guiné nos anos 30; outra mais recente, pouco antes do 25 de Abril, um primo alimenta um babuíno bebé a biberão. Estamos longe do rinoceronte do Durer e também de momentos mais traumáticos da colonização, da guerra e da descolonização. A memória mais recente, talvez menos gloriosa dos últimos tempos da presença portuguesa em África, da guerra, do retorno, também deve ter lugar onde se exprimir.

Um Museu das Descobertas de celebração do “orgulho nacional” ou da “grandeza de Portugal”, ou mesmo da paradoxal “interculturalidade de origem portuguesa” não parece fazer falta, até porque, em várias formas isso já existe. Já a reflexão sobre os vários aspetos de 600 anos de história merecem e necessitam de locais, espaços, um museu pode ser um contributo e um instrumento, mas não um aspeto único.

Toda esta discussão também tem servido para provar que história é política e que se a intenção de Fernando Medina (acredito que pouco pensada) não era dar um palco à instrumentalização do orgulho nacional pela extrema-direita, acabou por suscitar um debate interessante. É que o “politicamente correto”, à exceção de meios restritos, tem sido o discurso de “grandeza da pátria” atualizada no “encontro de culturas”, mantendo falácias como o não haver racismo em Portugal. O debate e novos instrumentos para a compreensão global do fenómeno expansão são uma necessidade para a sociedade portuguesa.

Nos últimos dias surgiu, talvez numa busca de consenso, a ideia de que seja o Museu da Viagem, é um caminho de certa forma “no meio”. É bonito, bom para o marketing, mas não creio que responda à diversidade de acontecimentos, percursos e memórias.

Sobre o/a autor(a)

Investigador de CIES/IUL
Comentários (1)