Natalidade: entre o “entusiasmo” e a contracepção laboral

porJoão Fraga de Oliveira

09 de May 2018 - 10:16
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“Por que é que nascem tão poucas crianças? O que é preciso fazer para que nasçam mais crianças em Portugal?”

Estas dúvidas eram, há uns anos, em Novembro de 2007, numa visita a Gouveia, as de um então Presidente da República, o Sr. professor Aníbal Cavaco Silva.

Não sei se o Sr. professor já esclareceu estas dúvidas, até porque consta que não só “nunca se enganava” como “raramente tinha dúvidas”.

De qualquer modo, vale a pena voltar a reflectir o assunto. Pode ser que da reflexão nasça a luz sobre o que é preciso fazer para que se dê mais à luz.

Se bem que talvez não seja este mês o ideal para reflectir (e para “agir”) nesta matéria, visto que, segundo as estatísticas, a maior parte dos bebés nascem em Setembro e são gerados em Dezembro, pelo Natal. Ou seja, são gerados numa altura em que, por designação dessa época (a do Natal), deveriam nascer. Parece contraditório mas tem explicações económicas, sociológicas e psicossociais, designadamente, a maior disponibilidade emocional e de tempo dos conceptores. O que também sustenta a resposta que, mais adiante se propõe para aquela (rara) dúvida do Sr. professor Cavaco Silva.

Segundo dados oficiais (Ministério da Justiça), em 2017, nasceram menos 2702 crianças do que em 2016 (em 2016, nasceram 90.852; em 2017, 88150).

Uma média de menos 7,3 bebés por dia! (Não se sabe como é que se concebem três décimas – 0,3 – de bebés por dia, insondáveis enigmas das estatísticas).

Aliás, as mesmas estatísticas garantem que Portugal tem vindo a registar, ainda que com pequenos interregnos de alguns acréscimos nos anos noventa, grandes quebras de natalidade desde 1976i, quando, então, havia mais do dobro de nascimentos do que actualmente.

É também neste contexto (ainda que não só) que se explica a crescente quebra demográfica (entre 2009 e 2016, Portugal perdeu mais de 260.000 pessoas), bem como, mais especificamente, o progressivo envelhecimento da sociedade portuguesa, com consequências sociais e económicas preocupantes, designadamente, ao nível da Saúde, do Emprego e, mais ainda, da Segurança Social.

Passe a pretensão de ironia, uma das hipóteses a colocar poderia assentar na existência de demasiadas modalidades de “contracepção”, umas a que os conceptores (bem) podem recorrer, outras a que (mal) são obrigados a submeterem-se:

-Há, claro, a contracepção natural. E, desta, há vários tipos: a comportamental, a “periódica”, a da lua e a do calendário;

-Há, toda a gente sabe, a contracepção artificial. Desta, há pelo menos dois tipos: a física e a química;

-Há a contracepção fiscal, sobretudo por omissão de muito mais inerentes isenções ou bonificações que neste domínio deveria haver, não como “incentivos” mas como direitos;

-Há a contracepção habitacional, com as rendas ao preço “turístico” a que estão;

-Há, até, permita-se a ironia, a contracepção patriarcal, um novo tipo surgido em 2017, por sinal bastante inclemente, com a orientação do Sr. Cardeal Patriarca D. Manuel Clemente de abstinência sexual para os “recasados”.

Mas, menos ironicamente, talvez mesmo mais dramaticamente, há sobretudo um tipo de “contracepção” que, mais sub-reptícia, menos perceptível, é especialmente (ainda que perversamente) “eficaz”: a contracepção laboral.

Das duas primeiras modalidades de contracepção (a natural e a artificial), quase toda a gente é especialista. Da terceira e da quarta (a fiscal e a habitacional), há por aí muitos folhetos explicativos. E da quinta há inerentes notas pastorais e, admite-se, esclarecedoras homilias.

É portanto da última, da “contracepção” laboral, que talvez mais interesse aqui reflectir. Até porque este tipo de “contracepção” apresenta-se de várias formas que, entre si, se articulam e reforçam.

De facto, não se vê “o que é preciso fazer para que nasçam mais crianças em Portugal”, para que se reverta esta tendência de queda da natalidade, se, para além de ser dada a atenção (e acção) devida a outros tipos de contracepções acima elencadas (nomeadamente, a fiscal e a habitacional), o Governo (este ou qualquer outro) não der também mais atenção (e acção) à qualidade do emprego. Por mais que aumente - e ainda bem - a quantidade deste e o desemprego baixe, como felizmente tem acontecido.

Não é o autor deste artigo obstetra, neonatalogista ou demógrafo mas, por formação e por profissão (e do que esta, também sobre isto, ainda que indirectamente, lhe permitiu ver, ouvir e reflectir), surpreende-o que o Sr. professor Cavaco Silva, para aquela sua (rara) dúvida, não tivesse colocado esta hipótese de resposta.

Aliás, não está nesta resposta (a falta de qualidade do emprego como uma das explicações para a queda da natalidade) sozinho o autor deste artigo. Há quem, com muito mais autoridade, nisso nos apoie e confirme.

Por exemplo, a demógrafa (e actual directora da base de dados Pordata, da FFMS) Drª Maria João Valente Rosa, quando escreve que “o sentimento de incerteza, a precariedade, a falta de confiança nas instituições e no futuro, (...) tudo isto influencia a decisão de aceitar ou de adiar a vinda de um filho”. E que “para além das políticas de apoio às condições de vida das famílias, é o apoio à conciliação entre a vida familiar e à vida profissional (sobretudo o apoio em serviços) que mais impacto tem tido na natalidade dos países desenvolvidos”ii.

Sendo relevante aqui ter em conta o quanto em muitas empresas (e departamentos da administração pública) não só a (des)organização dos tempos de trabalho (horários de trabalho) como a duração do tempo de trabalho (que em Portugal é superior à média europeiaiii) não permite essa conciliação nas condições exigidas a essas especiais circunstâncias de parentalidade.

Ou um antigo presidente da Sociedade Portuguesa de Demografia (Dr. Mário Leston Bandeira): “o caminho mais curto para transformar Portugal num país de grisalhos é persistir num modelo económico e social que promove a precariedade e a insegurança no emprego”iv.

Ou, ainda, a actual presidente da Associação Portuguesa de Demografia, a investigadora da Universidade de Évora, Drª Maria Filomena Mendes, dizendo, mais actualizadamente, há pouco mais de três meses, que, “quando se pergunta às pessoas o que é mais importante para aumentar a natalidade, falam do emprego e do rendimento em primeiro lugar. Termos mais rendimentos e maior segurança no trabalho é fundamental e não podemos pensar em políticas sem antes garantir isso”. Ou que, se pudesse escolher uma só medida para aumentar a natalidade, “escolheria a questão do emprego”, porque “quando conseguem ter um contrato sem termo, as pessoas decidem mais facilmente ter um filho.”v

É. Os bebés retraem-se em “vir cá para fora” quando lhes “cheira” a salários baixos, a desregulamentação e desregulação da duração e organização dos tempos de trabalho, a bancos de horas, a mobilidade geográfica, a trabalho a termo, temporário ou intermitente, a “recibos verdes”, enfim, quando lhes “cheira” a precariedade laboralvi, com crescentes constrangimentos na conciliação entre a vida profissional e a vida familiar.

Neste sentido, sendo mais concreto, actual e incisivo, é natural que os bebés se retraiam em “vir ao mundo” se, por exemplo, não se reverter um dos grandes factores “contracepcionais” que, porque suporte de tudo isso de que os bebés “não gostam”, constituiu a legislação laboral aprovada pelo anterior Governo entre 2011 e 2014, muito especialmente, em 2012, com a Lei 23/2012, de 25 de Junho.

"Eu não acredito que tenha desaparecido nos portugueses o entusiasmo por trazer novas vidas ao mundo", dizia também o Sr. Presidente Cavaco Silva, em 2007.

Não sei se assim respondo às (raras) dúvidas do Sr. Presidente mas, por mais difícil que seja acreditar (e é importante que se acredite mais), o tal “entusiasmo” depende, e muito, de salários justos, estabilidade da relação de trabalho, duração e organização dos tempos de trabalho que permitam conciliar a vida pessoal, familiar e profissional.

Sim, qualidade do emprego, condições de trabalho dignas são um factor decisivo no “entusiasmo” para “trazer novas vidas ao mundo”.

Sim, a inexistência de qualidade do emprego (e, mormente, a precariedade das relações de emprego / trabalho) é, de facto, mais uma modalidade de “contracepção” (neste caso, laboral) a que os conceptores (melhor dito, os contraceptores) são obrigados a submeterem-se, é talvez a principal explicação (também) para a queda da natalidade.


Notas:

i Muito embora esta ilacção possa ser considerada demasiado simplista, parece significativo que, havendo desde 1976 uma continuada quebra de natalidade, foi justamente neste ano, 1976, que foram instituídos os famigerados “contratos de trabalho a prazo” (Decreto-Lei Nº 781/76, de 28/10/1976).

ii “Fazer mais bebés. Os políticos podem ajudar-nos?” - https://www.ulisboa.pt/wp-content/uploads/15set_natalidade_ICS.pdf

iii “Portugueses trabalham mais horas e têm menos férias do que a média europeia” – Público, 6/3/2018 - https://www.publico.pt/2018/03/06/sociedade/noticia/portugueses-trabalham-mais-horas-e-tem-menos-ferias-do-que-a-media-europeia-1805515

iv “Casais portugueses não têm dinheiro nem tempo para um segundo filho” - Público, 17/2/2012 - https://www.publico.pt/2012/02/17/jornal/casais-portugueses-nao-tem-dinheiro-nem-tempo-para-o-segundo-filho-24007455

v Entrevista ao Expresso – 1º caderno – pag. 19, de 27 de Janeiro de 2018

vi Portugal é o terceiro país da União Europeia (depois da Eslovénia e da Espanha) com maior índice de precariedade laboral. E especialmente entre os jovens, o que, dadas as implicações biológicas dessa condição etária, mais importante ainda é em termos de (quebra de ) natalidade.

João Fraga de Oliveira
Sobre o/a autor(a)

João Fraga de Oliveira

Inspector do trabalho aposentado. Escreve com a grafia anterior ao “Acordo Ortográfico”
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