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O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana enquanto radical da protecção do trabalho

Num mundo que se indigna contra as discriminações e a violação dos Direitos Humanos há espaço para lembrar que também o trabalho é um Direito Humano.

I - O trabalho é uma actividade humana, nem sempre desenvolvida por conta própria, mas sobretudo desenvolvida numa posição de sujeição a terceiros, designadamente quanto à possibilidade da sua prestação e à direcção da respectiva actividade.

A definição de Contrato de Trabalho, tal qual está contida no Código do Trabalho (artigo 11.º) aponta para o contrato pelo qual “uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou a outras pessoas, no âmbito da organização e sob a autoridade destas”.

Esta definição de Contrato de Trabalho pressupõe, como resulta da sua natureza, que o trabalho seja prestado por pessoa singular, o que implica que seja prestado pelo tipo de pessoa mais protegida por Direitos Fundamentais, em especial por Direitos Fundamentais Subjectivos.

Assim, e antes do mais, o Contrato de Trabalho, a sua interpretação e execução encontra-se sujeito à observância do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, reconhecido no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa. Ora, foi justamente o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana que fundou a elaboração da Declaração Universal dos Direitos do Homem, reconhecida na nossa Constituição como cânone interpretativo dos Direitos Fundamentais nela consignados (artigo 16.º, n.º 1), havendo autores que destacam o seu carácter supraconstitucional.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem reconhece o direito ao trabalho, a liberdade de escolha de trabalho, a garantia de condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à protecção contra o desemprego (artigo 23.º, n.º 1), o princípio da não discriminação na remuneração, consagrando salário igual por trabalho igual (artigo 23.º, n.º 2) e o direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que permita ao trabalhador e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana (artigo 23.º, n.º 3) e a liberdade sindical (artigo 23.º, n.º 4).

Mas é também a Declaração Universal dos Direitos do Homem que determina que nenhuma disposição sua “pode ser interpretada de maneira a envolver para qualquer Estado, agrupamento ou indivíduo o direito de se entregar a alguma actividade ou de praticar algum acto destinado a destruir os direitos e liberdades” nela enunciados (artigo 30.º).

Assim, a protecção dispensada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos à propriedade privada (artigo 17.º, n.º 1), interpretada como incluindo a liberdade de iniciativa económica, tem de se ater aos estritos limites da protecção ao trabalho reconhecida pela Declaração Universal dos Direitos do Homem.

A prestação de trabalho envolve sempre um potencial de perigo para o núcleo fundamental dos direitos de personalidade (e de outros direitos fundamentais) do trabalhador, mercê da sua sujeição económica e funcional à entidade empregadora.

Por isso, quer a nossa Constituição, quer a legislação e regulamentação atinentes ao trabalho desenvolvem um conjunto de meios de especial protecção aos trabalhadores, de forma a garantir quer na dimensão sistemática do Direito do Trabalho, quer na sua aplicação, o respeito pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

II - Recuando no tempo, as revoluções de pendor liberal que puseram fim ao antigo regime, iniciadas no Século XVIII, vieram extinguir servidões pessoais e, em momento posterior, a escravatura enquanto formas admissíveis de obter a prestação de trabalho. De igual forma, como consequência de tais revoluções de pendor liberal vieram consagrar generalizadamente a liberdade de escolha de trabalho, pondo fim ao corporativismo de algumas organizações profissionais.

Muitos alimentaram e legitimaram, desde então, o trabalho como uma espécie de “locação” da força de trabalho de um indivíduo, sujeita ao mercado, com todas as implicações daí decorrentes quanto à determinação de preço, quantidade e condições de prestação do trabalho, conduzindo no fundo à recondução do trabalho ao conceito de mercadoria.

As consequências devem ainda hoje ser lembradas: remunerações insuficientes, arbitrariedade na gestão das relações laborais, trabalho de grávidas em condições deploráveis, exploração de trabalho infantil, enfim, condições que materialmente se aproximavam da escravatura.

O movimento operário, fosse na sua vertente espontânea, anarquista ou marxista travou longas lutas pela melhoria das condições e remuneração do trabalho. Uma luta poucas vezes pacífica ou isenta de riscos, com elevados custos em vidas humanas e privações.

A evolução da tecnologia tornava possível a dispensa de mão-de-obra, maximizando o lucro dos detentores do capital que, na tese de Marx, se apropriavam indevidamente da “mais-valia”, resultante da diferença entre o preço de venda e o custo de produção em trabalho.

A tensão social e o alargamento do direito de sufrágio permitiram uma progressiva aquisição de mecanismos jurídicos de protecção à prestação de trabalho, atenuando-se muitas das situação de indignidade de facto.

De igual modo, a Igreja Católica, acabou por reagir às iniquidades das relações laborais, de uma forma necessariamente moderada, com a Encíclica “Rerum Novarum”, de Leão XIII, em 1891. Este documento, seminal para a Doutrina Social da Igreja, pese embora exibir uma óptica conservadora, não deixa de reconduzir o trabalho à “Dignidade da Pessoa Humana”

A não existirem todas estas evoluções, seria inevitável a existência do “exército permanente de reserva” a que aludia Marx, permitindo assim o contínuo abaixamento da remuneração e das condições de trabalho, criando a profética crise do sistema capitalista que Marx previa em “O Capital”. Mas isso daria uma outra discussão que nos arredaria o aspecto central em análise.

III - A evolução das condições e remuneração da prestação de trabalho não acompanha e não acompanhará, neste modo de produção capitalista, a evolução da tecnologia. É inerente ao próprio modo de produção.

Costumo, a título de comparação, dizer que se a evolução da remuneração do capital progrediu numa razão geométrica, a remuneração e condições de prestação de trabalho evoluíram apenas numa progressão aritmética. Há alguns anos que já não é assim, acentuando-se o fosso entre estes factores de produção. E é espantoso como tantos trabalhadores se conformam…

Os últimos 30 anos têm sido marcados por uma tendência liberalizante, ouvindo-se as coisas mais espantosas a propósito do trabalho, com a sua equiparação a mercadoria veladamente defendida por tantos, que falam até em “mercado de trabalho”.

Independentemente de um posicionamento socialista, seja em que vertente for, trabalho não é equiparável a mercadoria nem deve ser tratado como bem transaccionável! O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana assim o impõe. E quando soçobrar este Princípio, é o próprio edifício de protecção dos Direitos Humanos que ruirá.

Hoje acenam-nos com novos produtos, sedutores e práticos, mas muitas vezes associados a um clima de informalidade, inovação tecnológica e de partilha: é o caso a Uber ou da Airbnb. A galope destes conceitos vem a informalidade e precarização das relações laborais e o aumento da precariedade, num incessante e imperceptível afã de nivelar por baixo, primeiro materialmente e depois formamlmente, Direitos Fundamentais como os Direitos Humanos e os Direitos Fundamentais de conteúdo laboral.

A verdade é que hoje, o próprio discurso dos sindicatos e das comissões de trabalhadores é olhado com desconfiança e desprezo, quando não com indiferença. Talvez isso se deva a uma falta de pedagogia, em especial na opinião publicada, quanto à natureza dos bens jurídicos que o Direito do Trabalho protege. Essa pedagogia pode e deve ser feita a partir do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e da defesa dos Direitos Humanos. Afinal, num mundo que se indigna contra as discriminações e a violação dos Direitos Humanos há espaço para lembrar que também o trabalho é um Direito Humano.

O próprio Direito do Trabalho tem evoluído, nos últimos anos nessa base: a defesa da igualdade de género é disso exemplo cabal.

IV - Aqui chegados, e com a percepção que o Direito de Propriedade e a liberdade de iniciativa económica não são absolutos, antes se têm de conformar com uma série de limitações impostas por outros Direitos Humanos!

A prestação de trabalho não pode ser vista como uma posição de sujeição. Da mesma forma que se educa uma criança a ter respeito pela nossa empregada doméstica, evitando eventuais abusos decorrentes da falta de percepção e egoísmo natural da idade infantil, impondo educacionalmente às nossas crianças o respeito pela “Pessoa Humana” e pela sua dignidade, por maioria de razão devemos praticar tal pedagogia, e com mais exigência, perante os adultos.

Numa altura em que se criminalizam, e bem, os maus tratos a animais, temos a obrigação de defender veementemente os Direitos Humanos nas relações laborais.

O “mobbing” laboral é uma forma ilegítima de assédio, tão ilegítima como a violência doméstica na sua vertente psicológica ou como o “bulling” infantil, cujo combate tem mobilizado a sociedade. Os valores que ditam a recusa destes fenómenos radicam no “Princípio da Protecção da Dignidade da Pessoa Humana”, princípio seminal dos Direitos Humanos.

Especialmente hoje, especialmente ao lado da minha muito querida Rita Garcia Pereira seria impensável e pretensioso da minha parte desenvolver o tema do “mobbing”. Preferi por isso, à guisa de introdução, ir à raiz da fundamentação da protecção do trabalho.

Afirmar a radicalidade da protecção do trabalho é afinal reconduzir o trabalho à sua condição de Direito Humano, tantas vezes esquecida. Reduzir a defesa do trabalho a um fenómeno de “luta de classes” ou a um fenómeno meramente de negociação económica é esvaziar o trabalho, e talvez aqui resida um dos erros de argumentação de hoje, resultando na legitimação de quem reconduz a prestação de trabalho a um bem ou uma mercadoria.

Este texto foi sobretudo escrito a pensar na minha obrigação pedagógica perante as minhas “crianças” e no meu gosto em sempre abalar as suas convicções e alimentar as suas incertezas: é especialmente dedicado ao Joaquim, ao Domingos, à Maria Rui e à Maria Manuel.

Lisboa, 14 de Junho de 2016

Intervenção na audição parlamentar sobre mobbing, a 14 de Junho de 2016

Sobre o/a autor(a)

Advogado, ex-vereador a deputado municipal em S. Pedro do Sul, mandatário da candidatura e candidato do Bloco de Esquerda à Assembleia Municipal de Lisboa nas autárquicas 2017. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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