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Não somos todos Centeno

O ministro das Finanças, sem qualquer aviso prévio e de uma só penada, conseguiu arrasar dois compromissos que o governo tinha assumido com o Bloco de Esquerda.

O Serviço Nacional de Saúde está com dificuldades. O caso da ala pediátrica do Hospital São João é o último exemplo, mas está longe de ser o único onde o desastre da falta de investimento invade a vida de utentes. O calvário das listas de espera para consultas é a outra face deste problema.

A escola pública não foge à regra e expõe à saciedade os problemas de quase uma década em que o investimento se reduziu a um pin na lapela de um governo. A lista de escolas em que há infiltrações no telhado, em que o amianto ainda não foi retirado e ameaça a saúde de alunos e professores, ou em que as turmas estão sobrelotadas, é motivo de vergonha nacional.

É verdade que a falta de investimento em serviços públicos tem sido sacrificada pelo cumprimento de metas de défice. Desde 2015, posso testemunhar, tem sido um tema incontornável nas negociações entre o governo e o Bloco de Esquerda. A resposta batida do executivo, com Mário Centeno a porta-voz, transformou-se quase num mantra: as metas de défice impedem mais investimento nos serviços públicos. Normalmente, a resposta passa por "até gostaríamos de poder investir mais na saúde ou em educação, mas..." e depois começa sempre a conversa do défice e das metas de Bruxelas. Os serviços públicos agonizam aos pés do todo-poderoso défice.

Foi com este filme batido como fundo que discutimos o Orçamento do Estado para 2018. Esmiuçámos cada rubrica, contrapusemos alternativas e mais alternativas, esprememos cada cêntimo na tentativa de conseguir ir mais longe no financiamento dos serviços públicos. Melhor do que PSD e CDS fariam, é certo; melhor do que PS faria sozinho, claro; mas aquém do que queríamos e, sobretudo, do que o país precisa. A meta de défice é a limitação óbvia que impede o orçamento de aprofundar as respostas aos problemas do país.

Assim, foi com satisfação que assisti ao anúncio do reflexo do crescimento económico nas contas públicas. Há uma melhoria de 0,3% do PIB face ao previsto no final de 2017, o que significa uma folga que ronda os 500 milhões de euros. Fiquei satisfeito, acima de tudo, porque esse dinheiro poderia ser utilizado para melhorar o Serviço Nacional de Saúde ou a escola pública, sem sequer beliscar as metas que o governo tinha acordado com a Comissão Europeia.

O governo apresentou o Orçamento do Estado para 2018 com um défice previsto de 1% (1,1% se introduzirmos as medidas para reparação dos incêndios florestais que a Comissão Europeia não irá contabilizar). Obteve o acordo da Comissão Europeia para esse Orçamento do Estado e para essa meta de défice. Agora, cumprindo a meta acordada, estão ao dispor 500 milhões de euros adicionais. O grande argumento de Centeno foi ultrapassado e arrumado a um canto: a melhoria da economia ajuda-nos a poder melhorar os serviços públicos. Não devemos desperdiçar esta oportunidade.

Depois da boa notícia, chegou o balde de água fria: o ministro das Finanças, sem qualquer aviso prévio e de uma só penada, conseguiu arrasar dois compromissos que o governo tinha assumido com o Bloco de Esquerda. Centeno decidiu rever a meta de défice para 2018 e, passo contínuo, retirar a prioridade que o governo tinha garantido ao financiamento do Estado social. Apesar do que foi aprovado na Assembleia da República, apesar das garantias que tinha dado, apesar dos compromissos com Bruxelas.

Acompanho, portanto, a recomendação do Sr. Presidente da República sobre este tema: estabilidade. É isso que está a ser exigido ao governo, estabilidade nas metas de défice definidas há quatro meses e estabilidade nos compromissos assumidos. Se a economia está melhor, os serviços públicos devem compartilhar dos benefícios que as contas públicas demonstram.

É, também, a estabilidade da vida das pessoas que está em causa: a certeza de poderem confiar no Serviço Nacional de Saúde e de terem na escola pública um pilar do futuro do país. Colocar isso em causa é incompreensível, ainda mais num contexto em que há dinheiro para o fazer e nenhum compromisso europeu que o impeça.

É estranho que seja o governo, por iniciativa própria, a fazer oposição ao Orçamento do Estado para 2018 e às metas que propuseram. Faz mal Centeno em pretender ir além das metas, sacrificando os serviços públicos e as pessoas, criando uma instabilidade absolutamente desnecessária. Fica mal António Costa, se deixar o governo incumprir os compromissos políticos assumidos.

Artigo publicado no “Diário de Notícias” a 12 de abril de 2018

Sobre o/a autor(a)

Deputado, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, matemático.
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