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O incómodo
Um estudante de pós-doutoramento que se candidata ao concurso de bolsas da Fundação para a Ciência e Tecnologia está com isso a incomodar a Administração? Uma empresa que se candidata aos apoios financeiros à internacionalização disponibilizados pelo Governo está com isso a incomodar a Administração? Uma organização não governamental que trabalha na inclusão da comunidade cigana está a incomodar a Administração ao candidatar-se às linhas de financiamento abertas pelo Estado para apoiar práticas concretas de inclusão social?
A resposta para as três perguntas só pode ser não. Era o que mais faltava que a candidatura a apoios públicos a atividades de vário tipo fosse de encarar como um incómodo para a Administração. É um direito a que corresponde a obrigação do Estado de ser eficiente e transparente na afetação dos recursos publicamente disponibilizados para esses apoios.
Celeste Amaro, Diretora Regional da Cultura do Centro, acha que não é assim. Há dias, em visita a uma companhia de teatro que entendeu não se candidatar aos concursos da Direção Geral das Artes, a Diretora Regional decidiu elogiar essa escolha de não candidatura a financiamento público, dizendo: “é uma lição de como um grupo de teatro profissional (…), que se dedica de corpo e alma ao seu trabalho, vive sem pedir dinheiro, não incomoda a administração central. (…) Preferiram estar a trabalhar (…) em vez de estarem ao computador a tratar do processo [de candidatura a apoio]”. Louvem-se as companhias de teatro que não pedem financiamento ao Estado, acha a Diretora Regional. Abençoadas sejam as que o mercado suporta, pensa a Diretora Regional. Sim, que isto de ter que avaliar candidaturas e afetar recursos às que o fazem é uma maçada, adverte a Diretora Regional. É um favor que o Estado faz, um gesto de generosidade que ingratamente nunca é reconhecido pelos pedinchantes sempre sedentos de confortáveis apoios públicos, sentencia a Diretora Regional.
Celeste Amaro tem todo o direito de pensar como quiser. Mas já a Diretora Regional da Cultura do Centro não tem o direito de insultar o trabalho dos criadores culturais e a inteligência das pessoas em geral. Uma Diretora Regional que mostra desconhecer que os apoios públicos às artes e à criação cultural são imprescindíveis para garantir o direito a uma fruição cultural plural e que evidencia ter o entendimento de que o apoio financeiro à cultura é um favor que o Estado faz a agentes que pedem apoios em vez de trabalhar é alguém que exibe uma flagrante inadaptação funcional às suas responsabilidades públicas específicas. É, enfim, um incómodo.
Artigo publicado no diário “As Beiras”, em 31 de agosto de 2018
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