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Lei laboral: sob pressão, algo se mexeu

Falta ainda muito para recuperar direitos destruídos no período da troika e não há sociedade que recupere dignidade e democracia se tudo isso ficar à porta das empresas.

Intervenção de Catarina Martins no encerramento da Conferência dos 200 anos de Karl Marx, realizada em Lisboa a 24 e 25 de março.

Começo com uma notícia deste momento: aumenta a lista de presos políticos na Catalunha. Ordens de Rajoy com a cumplicidade da União Europeia. Um dos muitos caminhos que vai mostrando por estes dias como o neoliberalismo dispensa a democracia. Foi convocada uma concentração solidária para a amanhã às 19h frente ao consulado espanhol em Lisboa: “Liberdade para os presos políticos”. Lá encontramos.

Camaradas,

Ao longo de dois dias conversámos sobre Marx e o seu legado, discutimos o marxismo como instrumento que interpela o que vivemos e interpelámos o legado de então pela experiência de hoje.

Tivemos a extraordinária oportunidade de ouvir e de partilhar ideias com filósofos, historiadores, artistas, economistas e cientistas políticos oriundos de Espanha, Reino Unido, Canadá, França, Líbano, Índia e Estados Unidos. Agradecemos sentidamente a generosidade da sua presença. Num ano de tantas celebrações marxistas, ter estas pessoas reunidas aqui, foi um privilégio.

Agradeço ao Francisco Louçã, que tornou possível este programa, à Marisa Matias e ao Luís Fazenda, ao departamento internacional do Bloco e à equipa de produção que tornaram possível este encontro. Agradeço aos tradutores e aos intérpretes que acompanharam este congresso, tornado possível o nosso diálogo em português, inglês, francês, castelhano e língua gestual portuguesa. Um agradecimento ainda ao esquerda.net que permitiu que este congresso fosse acompanhado em direto, também à distância. E, claro, a todos os que com a sua presença fizeram este congresso ao longo de dois dias.

Este congresso contou com o empenho de dirigentes e militantes do Bloco e de tantas outras pessoas que se juntaram e que estudaram, prepararam intervenções, debateram, como oradores nos diversos painéis ou na plateia. Foram 500 participantes que construíram este congresso, usando a análise marxista para pensar a crise económica e as convulsões do nosso mundo, do sistema financeiro ao patriarcado, da integração europeia à crise climática. Recusando análises simplistas, caricaturas ou profecias. Aqui não há espectadores do tempo, somos marxistas. Conhecemos para transformar, para superar o capitalismo, para romper opressões, para emancipar.

O Bloco não é, e não quer ser, um partido doutrinário. Filiamo-nos na mais aberta tradição do marxismo: a de um corpo teórico aberto que se confronta com os seus debates, com as interpelações de outras correntes de pensamento e com a experiência da luta política. Não nos interessa o marxismo como repositório de argumentos de autoridade ou como garantia identitária. Interessa-nos, e muito, como ferramenta de trabalho para quem não desistiu de, como disse Sérgio Godinho, fazer uma outra terra no mesmo lugar. Sabemos que a comemoração de 200 anos de Marx irritou muita cabeça pensante da direita. Ainda bem. Queremos que saibam que o capitalismo não é o fim da história e são cada vez mais aqueles que o compreendem.

Marx fez a primeira, e única até hoje, crítica sistémica do capitalismo. Não por acaso, se há 30 anos muitos consideravam o seu legado ultrapassado, hoje, depois da crise financeira de 2007/2008, tantos voltam a Marx para perceber o que aconteceu, o que está a acontecer. Marx é uma referência para os marxistas mas não apenas para os marxistas e essa influência persistente é o testemunho da sua centralidade.

Marx descobriu e explicou como o capitalismo cria riqueza, o seu sistema de acumulação infinita e a inevitabilidade das suas crises. Mas explicou também como esse sistema, assente na exploração do trabalho, na exploração de quem trabalha, se afirma e sobrevive porque se constitui como o sistema que determina as relações sociais e impõe o poder de uma classe muito minoritária  - capitalista - sobre a generalidade da população - quem vive do seu trabalho.

O capitalismo, com tantas crises quanto capacidade de adaptação, sobrevive produzindo crescentes desigualdades, sempre justificadas com inevitabilidades que não resistem à análise dos processos históricos e políticos. A sua permanente chantagem de legitimação, anunciando-se como condição de toda a capacidade criativa humana e tentando omitir a sua real condição de opressão e exploração, é desmentida pela lógica e pela história. E se é certo que Marx não anuncia, como algumas caricaturas que lhe foram feitas, um sentido único para a história ou a inevitável superação do capitalismo, a sua análise - e o seu exemplo de pensamento feito ação - fornece-nos os instrumentos essenciais à luta emancipatória.

Olhemos o caminho feito. Com as suas contradições, avanços e recuos. Em 200 anos, os combates contra as desigualdades, foram sempre feitos pela luta de quem afrontou o capitalismo como sistema. Uma  luta com expressões diversas, determinada por diferentes relações de força, alianças e contextos, mas que olha sempre para lá da relação de exploração instalada, e afirma a vontade de romper com a injustiça e de pensar outras relações sociais e de poder, de antecipar a igualdade.

Nas lutas pelo salário e pelo horário de trabalho, no combate ao trabalho infantil, nas lutas feministas e antirracistas, na defesa do ambiente, cada mudança realmente efetiva e emancipatória foi feita contra o modo de produção capitalista. Sem os revolucionários, não teria havido sequer reformas.

Andámos tanto desde a revolução industrial e as suas condições indignas de trabalho e andámos tão pouco. O terrível do momento que vivemos é verificarmos que cada direito conquistado é sempre frágil porque o modelo capitalista não foi posto profundamente em causa. Os direitos políticos e sociais para trabalhadoras e trabalhadores, mesmo quando são consagrados nas constituições e nas leis e dados como adquiridos nos discursos oficiais, são negados na prática quotidiana privando homens e mulheres de acesso a salário, habitação, saúde, educação. O que se anuncia como direitos para todos é como um conjunto de privilégios de um qualquer clube para o qual os de baixo não foram convidados. Esta é a realidade do mundo do trabalho. E a precariedade, que se alimenta da condenação dos trabalhadores a escolherem entre trabalho sem direitos e direitos abstratos sem trabalho concreto que lhes dê chão, é a expressão mais grotesca da exploração do trabalho no nosso tempo.  

Hoje, o capitalismo assume uma forma particularmente punitiva. Uma integração europeia feita ao sabor dos interesses dos de cima fabricou a periferização dos de baixo para depois castigar os que perderam com ela. O capitalismo gerou o desemprego e a pobreza em massa para depois se atirar à pouca proteção social que lhes resta. A cada falhanço, a cada crise, o capitalismo torna-se mais injusto, mais agressivo, mais punitivo.

A crescente divisão entre o pequeno grupo que ganhou com a globalização, uma elite global que vive o privilégio do acesso ao conhecimento, da circulação pelo mundo, de salários que permitem olhar para lá da sobrevivência de cada dia, e a generalidade da população, que nos últimos anos, com a crise económica e financeira e a resposta austeritária, apenas conheceu retrocesso nos seus direitos, é o pasto do populismo xenófobo e conservador. Não é uma questão nova, ainda que se coloque sempre de novas formas. Como hoje o Fernando Rosas nos lembrou. Aprendamos com o passada porque queremos hoje construir futuro.

Há uma crescente indignação nas classes trabalhadoras que exige resposta. Resposta política que terá de ser luta para superação de um modelo de produção que cria excluídos e desigualdades como nunca. Olhar com displicência ou arrogância para quem se sente excluído, e responde com raiva, ou pedir a quem sente o chão fugir-lhe dos pés todos os dias que continue a confiar nas promessas de sempre, é um enorme erro. De Trump ao fascismo de Erdogan e à extrema-direita que ganha eleições um pouco por toda a Europa, o que salta à vista é a completa falência das forças políticas que prometem avanços e direitos, sem tocar na estrutura da economia qu cria as desigualdades.

O projeto da esquerda, seguramente da esquerda marxista, será fazer da indignação transformação e não permitir que ela se torne em decepção. A única resposta capaz ao projeto do ódio populista é a mobilização para a construção de um futuro que supere o capitalismo, que responda pelos 99%. Que parta dos problemas concretos para desfazer as inevitabilidades.

Na campanha presidencial americana de 2016, a mesma que deu a vitória a Trump, o campo que mobilizou a esperança de milhões que se juntaram a Bernie Sanders, foi aquele que, 30 anos depois do fim da guerra fria, chamou socialismo ao seu projeto de futuro.

Aqui ao lado, em Espanha, onde a direita domina ainda, os movimentos de indignados mostraram uma enorme força e uniram-se em projetos emancipatórios. A greve de mulheres deste 8 de março surpreendeu toda a Europa. E, lá como um pouco por todo o mundo, as feministas deixaram de ter vergonha de se afirmarem como tal. A indignação pode ser transformação. Superação. À esquerda cabe a coragem da proposta política clara, da mobilização para a luta, da construção da alternativa. Este congresso é também parte da construção desse caminho.

Hoje em Portugal vivemos um momento particular. O acordo político de 2015, que permitiu afastar a direita do governo e parar o empobrecimento do país, criou uma expectativa popular de mudança das condições de vida tão legítima quanto urgente. Algum caminho foi feito e o Bloco empenhou-se e empenha-se em cada um dos passos que permite recuperar direitos para quem vive do seu trabalho.

Não me debruçarei sobre a situação política, mas há um aspecto da atualidade que merece a sua reflexão aqui. Falo-vos de trabalho, porque a primeira interpelação que o marxismo nos faz é da dignidade de quem trabalha: a dignidade que se faz no trabalho, nas condições do trabalho. E isso era válido nas fábrica inglesas do século XIX, como é nos call centre do século XXI.

Não por acaso, o mais difícil de concretizar dos acordos feitos em 2015 são as alterações ao Código de Trabalho. Há uma reação violenta dos patrões a cada alteração proposta; não esquecemos como o administrador da Altice fez queixa por o Bloco apresentar propostas sem lhe pedir autorização ou como o dono do Pingo Doce nos agracia com um “só estorvam”. Faz-se sempre sentir também uma reação negativa da União Europeia, que, mesmo com todas as suas previsões a falharem redondamente, insiste em que a política de cortes nos direitos do trabalho é para continuar. E o Partido Socialista não tem hesitado em juntar o seu voto ao da direita para travar até as propostas que constam do seu programa.

Mas finalmente, no final da semana passada, e depois de uma enorme pressão, algo se mexe.

Dois anos depois de assinados os acordos com os partidos de esquerda e um ano e meio depois de conhecido o relatório do Grupo de Trabalho com o Bloco de Esquerda, o governo anunciou finalmente na passada sexta-feira a concretização de algumas das medidas que já tinha consensualizado com o Bloco de Esquerda para alteração da legislação laboral: limitações aos contratos a prazo, eliminação do banco de horas individual,  a penalização das empresas com alta rotatividade de trabalhadores, reforço da capacidade de inspeção da Autoridade para as Condições de Trabalho e algumas restrições ao recurso a trabalho temporário.

A proposta inclui matérias acordadas com o Bloco relativas à limitação aos contratos a prazo, em cinco dimensões concretas:

  • nos fundamentos legais para contratação a prazo, eliminando-se a possibilidade de contratar a termo para funções permanentes jovens à procura do primeiro emprego e desempregados de longa duração. Termina assim um estatuto laboral de segunda categoria reconhecido pela lei;
  • é ainda reduzida a possibilidade de contratar a termo sem fundamento no início de atividade ou de nova unidade económica;
  • é garantido o direito dos trabalhadores contratados a termo às devidas compensações quando o contrato caduca;
  • é impedido que a contratação coletiva possa ampliar os fundamentos para a contratação a termo para além do que a lei define.
  • e, finalmente, é reduzida de três para dois anos a duração máxima dos contratos a termo.

Não é tudo o que os trabalhadores precisam. Claro que não. Mas são passos para chegar ao princípio legal, que tem tido mais exceções que regras, que a cada posto de trabalho permanente corresponda um vínculo efetivo. E o Bloco, que se bate há tanto por estas propostas, aqui está para exigir a sua concretização sem mais atrasos.

A proposta que o Governo apresentou agora à Concertação Social  inclui também a criação de uma taxa de rotatividade, por via de um agravamento, ainda a definir, da contribuição patronal para a Segurança Social. Ainda que esta medida não esteja ainda definida de forma a que se perceba o seu alcance, registamos que, após prolongada indefinição, o governo finalmente opta por um caminho, que exclui qualquer benefício às empresas em sede de TSU, tal como era exigido pelo Bloco.

Também com enorme indefinição, a proposta apresentada refere mecanismos de limitação e combate ao abuso do trabalho temporário, tanto sobre os fundamentos da contratação temporária - importante para combater o abusos e recursos ilegal a esta contratação -, como na redução do número de renovações admissíveis por lei, hoje sem limites. Aguardamos, com exigência, a forma da sua concretização.

A proposta do Governo reflete ainda uma terceira matéria negociada e consensualizada no Grupo de Trabalho com o Bloco de Esquerda: o reforço da Autoridade para as Condições do Trabalho e a criação de um mecanismo automático de recrutamento de inspetores que mantenha o seu número total no cumprimento dos rácios de referência internacionais. A concretização dessa medida é muito relevante, entre outras coisas, para assegurar a efetividade dos mecanismos de combate aos falsos recibos verdes resultantes da nova lei de reconhecimento dos contratos de trabalho.

Finalmente, registamos o compromisso de reforço da proteção social dos trabalhadores desempregados mais pobres, reduzindo o prazo de garantia para acesso ao subsídio de desemprego. Mas registamos também que se mantém o prazo de duração do subsídio, que continua a desproteger os desempregados de longa duração.

Este é pois o momento de garantir as propostas se transformam em proposta de lei apresentada à Assembleia da República na presente sessão legislativa, ou seja, até ao Verão, para poderem ser apreciadas e votadas pelo Parlamento. Para isso, é necessário definir detalhadamente aspetos enunciados sem concretização (valor da taxa de rotatividade; limitações ao trabalho temporário). O Bloco de Esquerda vai bater-se para que esta concretização seja acordada no âmbito da maioria parlamentar e votada nos próximos meses.

Nenhum balanço da atual experiência política pode secundarizar um aspeto central: no fim destes quatro anos, o quadro legal degradado em que os trabalhadores saíram da troika estará recuperado, e com ele as condições para a luta e mobilização, ou teremos de novo o quadro em que a direita impõe os recuos e o PS, no governo, deixa-os consolidaram-se na lei e na sociedade? Essa é a pergunta a que o PS tem de responder.

A grande omissão da proposta do Governo é a contratação coletiva, o que não é um pormenor. Falta ainda muito para recuperar direitos destruídos no período da troika e não há sociedade que recupere dignidade e democracia se tudo isso ficar à porta das empresas.

Nas próximas semanas, com sorte, ainda vamos voltar a ouvir falar do diabo, quem sabe. Os patrões e a direita tentarão travar qualquer mudança, por pequena que seja. Estamos curiosos para ver que tragédias vão ser anunciadas. Uma coisa sabemos de certeza: quando a tragédia teimar em não vir para salvar a nossa direita, o Bloco cá estará para ir mais longe.

Em nome do trabalho. Em nome de quem dá tudo à este país. Em nome de quem merece tudo o que o país tem para dar. Terão tudo de nós. Tudo o que soubermos, tudo o que pudermos, tudo o que conseguirmos. É para isso que cá estamos. No Bloco de Esquerda sabemos de que lado estamos. Trabalhamos por quem trabalha.

É quem trabalha que constrói o país.

É o trabalhador a turnos, que não conhece dias e noites e exige a proteção da sua saúde, que constrói este país.

É a precária, que nunca sabe como se chega ao fim do mês, a quem devem o contrato de trabalho, que constrói este país.

É o trabalhador migrante, tantas vezes abandonado e mesmo perseguido onde trabalha, que constrói este país.

É a jovem mais qualificada, mas sempre com o salário mais baixo, que constrói este país.

É quem trabalha a cada dia, quem tem a vida suspensa no trabalho temporário, que constrói este país.

É por esta gente que nos batemos, a nossa gente.

E temos tanto por fazer. Nestes dias reforçamos a força, as razões, o projeto para esse caminho.

Obrigada pela vossa presença.

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda. Atriz.
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