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Caríssimo Tiago

Quando um filho, ao jantar, entre a sopa e o bacalhau, pede à mãe para levar uma manta para a escola, isso não pode ser bom sinal.

Não sei se todos os dias, quando acorda, tem de se preocupar com o local onde os seus filhos vão passar a maior parte do tempo até regressarem a casa ao final da tarde. Para dizer a verdade, nem sequer sei se tem filhos. Mas, pouco importa para o caso. Os pais e mães da freguesia de Moscavide e Portela, que talvez nem saiba onde fica, têm de se preocupar…. e muito! Já lhe explico porquê…

Quando um filho, ao jantar, entre a sopa e o bacalhau, pede à mãe para levar uma manta para a escola, isso não pode ser bom sinal. Na nossa freguesia, infelizmente, tornou-se um ato normal. A esta altura, já deve estar tentado a mudar de página e a pensar: «e o que tenho eu a ver com isso?» Peço-lhe um pouco mais de paciência.

Indo direto ao assunto, a verdade é que tem… e bastante! Pois fique sabendo, caro Tiago, que as crianças de Moscavide e Portela, uma freguesia do concelho de Loures, mesmo às portas de Lisboa, onde o Tiago trabalha, levam mantas para a escola. E não só. Levam mantas, levam luvas e levam botas de borracha. Porque essa é a única maneira de não passarem as aulas a tremer de frio ou com os pés encharcados até ao osso. Isto, quando há aulas, claro está. Porque, muitas vezes, a água que entra nas salas de aula é tanta que é impossível alguém ensinar e aprender lá dentro. Já para não falar na Educação Física, que, na freguesia de Moscavide e Portela, está prestes a ser considerada uma disciplina de verão, tantas são as vezes que o professor se vê obrigado a cancelar o que havia planeado.

E isso é apenas uma amostra do que as nossas quase 2.000 crianças passam diariamente nas escolas que o caríssimo Tiago tutela. Porque o cenário geral é verdadeiramente apocalíptico: fibrocimento degradado, fios descarnados e desprotegidos embebidos em água da chuva, placas de isolamento térmico que caem durante as aulas, computadores em curto-circuito, entre outras armadilhas. Um pouco ao estilo de algumas séries que os nossos “teenagers” de hoje não perdem. Mas, se andar nas escolas da Portela pode ser como um episódio de “The Walking Dead”, a verdade é que, nós - pais, mães, encarregados de educação, professores e alunos - temos a sensação de fazer parte de um qualquer episódio de “Game of Thrones”, tantas são as vezes que fomos empurrados da Câmara para o Ministério da Educação e de volta para a autarquia.

Peço, desde já, desculpa por todo este alarido. Longe de nós querer perturbar o seu “Roteiro da Inovação” e outras iniciativas empreendedoras e meritórias da mesma natureza. Mas, os 100 mil euros que, pressionado pela comunicação social, decidiu atirar para calar a nossa revolta, são uma gota num oceano e não chegam nem para um décimo da empreitada que estas escolas implicam. Mas, o caríssimo Tiago deve saber bem do que falo. Afinal, ainda há poucas semanas esteve em Ponte de Lima para assinalar a requalificação da Secundária local por mais de…. 13 milhões de euros. E está ao corrente das obras de requalificação da Escola Secundária de São Pedro, em Vila Real, que se encontra numa situação similar às nossas, e que vão custar 4,5 milhões de euros. Ou das obras da EB 2,3 de Gueifães, orçadas em mais de 2,5 milhões de euros. Por isso, os seus 100 mil euros não são mais do que “areia para os olhos” para calar a comunicação social. Mas, isso, o Tiago sabe bem.

O discurso do “estamos a acompanhar a situação” não “cola” nas gentes da nossa freguesia. São mais de 10 anos a “acompanhar a situação” e nós, caríssimo Tiago, para ser sinceros, estamos fartos! Não que a culpa seja inteiramente sua, longe disso. Afinal o Tiago só está na tutela há dois anos e nós sabemos bem que houve um claro desinvestimento nas escolas públicas e uma quase total ausência de manutenção, o que leva agora a que as obras necessárias sejam mais profundas e, consequentemente, mais dispendiosas.

Quanto à deixa do “há prioridades”, aí somos bem menos compreensivos. Mas, haverá prioridade mais prioritária, passe o pleonasmo, do que a Educação? Haverá investimento mais urgente do que a reabilitação das nossas escolas públicas (todas)? É ou não urgente e imperioso que as nossas crianças possam estar em segurança e a aprender num espaço adequado e confortável? Sendo ou não sendo pai, caríssimo Tiago, ainda consegue dormir descansado?

Sobre o/a autor(a)

Jornalista
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