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Tudo Menos Propinas

O Governo ainda não se decidiu sobre o que é, para si, o Ensino Superior? Mas entendamo-nos, o Governo já decidiu pelo menos uma coisa: nas propinas não se mexe.

“Alunos que passem de ano vão ter viagens de comboio como prémio”1, dizia o Público anunciando a iniciativa do Governo de oferecer viagens IntraRail a estudantes de primeiro ano com pelo menos 36 créditos completados este ano letivo. O objetivo? Combater o abandono escolar e promover a ferrovia. Parece absurdo? É porque é.

Por passar de ano, no primeiro ano, recebe-se uma viagem que comprada diretamente à CP custa cerca de 130€. Tenhamos em conta que estudar no Superior custa, só em propinas, cerca de 100€/mês. É preciso fazer mais contas para perceber que esta medida em nada combaterá o abandono escolar quando medidos custo/benefício, somente em termos monetários, a curto prazo? Gasto 1000€ em propinas, mas calma, recebo um bilhete de comboio no valor de 130€!

Maria Fernanda Rollo, Secretária de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, afirma que se está a “desperdiçar” dois terços do talento jovem do país quando apenas um terço dos jovens em idade de frequentar o Ensino Superior de facto o frequenta. Diz que é preciso que aprendam que com um diploma na mão a oportunidade de encontrar emprego aumenta em 85%. Será que Maria Fernanda Rollo alguma vez se sentou à mesa com estudantes, com jovens que trabalham em condições precárias (a maioria), ou que alguma vez procurou falar com alguém que tenha desistido de estudar, será que conhece o regulamento de atribuição de bolsas de Ação Social?

Há dias atrás noticiava-se que o Governo pretende reativar o sistema de crédito a estudantes de mestrado e doutoramento, alimentando a banca privada, e tendo o Estado como fiador, variando o spread consoante a média do estudante. Tangente a estas duas medidas, tão absurdas quanto preocupantes, está a ideia de que a educação é um benefício exclusivamente privado para os estudantes que deverão, por sua vez, investir no seu próprio futuro e suportar os custos da sua formação, perpetuando-se a velha chantagem e competição de mercado, “ou estudas ou não tens trabalho!”, bem como a desigualdade de oportunidades de acesso perante uma Ação Social empobrecida. Não só estas medidas caem em saco roto quando as oportunidades e, acima de tudo, a qualidade do emprego não se verificam - tratam-se dos trabalhadores mais precários e de um grupo etário cuja taxa de desemprego está nos 25%, como os incentivos de combate ao abandono escolar não atacam um dos problemas de fundo - os custos de frequência do Ensino Superior. Tratam-se de medidas meritocráticas que continuam a excluir aqueles que lá não estão por impossibilidade de pagar, mesmo com bolsas, desligadas da realidade da maior parte dos estudantes.

Estas medidas do Governo não vêm em altura inocente. Não só as estruturas associativas estudantis têm alertado para o problema do abandono escolar, como o relatório da OCDE, apesar de incentivar a continuação da política neoliberal e privatizadora do Superior, sublinha a importância de ter mais jovens a estudar. O Governo está desesperado por combater o abandono escolar sem mexer nas propinas e, por isso, a senhora Secretária de Estado tem feito de polícia bom, apresentando medidas fofinhas mas inócuas, como esta, ao mesmo tempo que faz afirmações escabrosas numa entrevista sua ao Diário de Notícias2, demitindo-se o Governo de qualquer responsabilidade de fundo que o Estado possa ter no Ensino Superior: “As famílias têm de criar contextos para que os jovens estudem”; “É preciso que a sociedade tenha noção disto: nós não vamos ter pessoas para trabalhar!”.

O Governo ainda não se decidiu sobre o que é, para si, o Ensino Superior? Uma empresa pública (ou já semiprivada no caso das Universidades e Politécnicos-Fundação) que vende diplomas que permitirão ao estudante sobreviver, ou se de facto um investimento público, não só na formação da mão-de-obra, mas também na produção e disseminação de conhecimento, numa sociedade onde todos possam estudar se assim o quiserem, independentemente da sua utilidade para o mercado ou situação económica? Mas entendamo-nos, o Governo já decidiu pelo menos uma coisa: nas propinas não se mexe. Vai, portanto, continuar a investir em políticas-maquilhagem, continuando a barrar o acesso a estudantes com menos rendimentos, a vender educação, a demitir-se daquela que é a sua obrigação constitucional de garantir igualdade de oportunidades e de financiar a educação, qualquer que seja o grau, agarrando-se a quaisquer argumentos, mesmo que contraditórios, para evitar falar de propinas.


Notas:

Sobre o/a autor(a)

Ativista anti-propinas, bolseira de investigação e dirigente do Bloco de Esquerda.
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