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Um dia talvez comece por gritar que ela não presta
Durante os últimos meses estive em várias escolas para apresentar conferências sobre igualdade de género. Em algumas, para crianças de 12 anos; noutras, para adolescentes de 17. Às vezes, tudo junto. Do Porto a Setúbal, lá enfrentei salas mais modestas ou auditórios mais apinhados da audiência mais difícil que já encontrei: miúdas e miúdos de olhar desafiador ou simplesmente desinteressado. Posso dizer que passei a respeitar ainda mais o trabalho dos professores, mas esta crónica não é sobre isso.
Este texto é sobre a dificuldade de explicar a um miúdo do oitavo ano por que razão o homem que daqui a uns anos será poderá, um dia, fazer mal à mulher de quem gosta. Que um dia talvez comece por gritar-lhe que ela não presta, ou por fiscalizar-lhe atentamente a roupa antes de sair de casa. E que, nessa altura, as razões que ele hoje não encontra surgirão com o desembaraço das ideias que trazemos dentro. E que, quando tudo isso for a sua rotina, um dia, ele acabará por lhe levantar a mão e, descendo-a, marcá-la-á pela primeira vez.
Este texto é sobre a dificuldade de explicar a miúdas do 10º ano por que razão mulheres, como aquelas que um dia serão, conseguem aguentar vidas arrastadas pela violência. Que se por coragem não é, tão- -pouco lhe podemos chamar cobardia. Que, pouco a pouco, a incompreensão cede à dormência. Que o medo constante, a culpa autoinfligida e o isolamento surgem com o desassombro das ideias que nem demos por nos terem posto dentro.
Invariavelmente, e seja qual for o tamanho da sala, o silêncio cola-se às paredes quando falo da sentença do juiz Neto Moura. É neste momento que a maior parte dos olhos se focam em mim, incrédulos. A ingenuidade dos queixos caídos soa remotamente a esperança. E é por isso que este texto também é sobre a urgência de contar a todos os miúdos e todas as miúdas deste país que, nos últimos 14 anos, houve 472 pessoas assassinadas por serem mulheres.
Como sempre, o mais complicado é explicar porquê. Que sim, também há homens que apanham (como os rapazes fazem questão de lembrar), mas que não, não é a mesma coisa (como as raparigas às vezes aplaudem). Que isto não é uma guerra de géneros, mas antes a expressão mais violenta de uma desigualdade normalizada nos gestos mais simples do dia-a-dia.
Recorrendo aos exemplos que nos vão chegando dos noticiários, lá vou relatando as sentenças, as estatísticas, as debilidades dos tribunais e a fragilidade de uma justiça que teima em ter género. Mas é pouco. Eles querem, e eu preciso, de saber porquê. E aí as suas vidas entram no debate. O que faz a mãe, como é educado o irmão, os brinquedos das crianças, as cores da roupa, o desporto e os estudos. Como tudo, mas mesmo tudo, nos enreda nos papéis que escreveram para nós do que é ser homem e ser mulher.
Quando uma miúda levanta o braço e eu lhe passo a palavra, indigna-se com a moralização da sexualidade de acordo com os géneros: homens-garanhões e mulheres-galdérias, quem nunca ouviu isto? O que é o assédio? Aos rapazes, tento explicar que ser culpado e ter culpa não é a mesma coisa, foram educados assim. A cultura, sempre a cultura.
Têm 15 anos em média. Rapazes e raparigas. Para muitos (40%), se alguém impede o namorado ou a namorada de se vestir de determinada forma, isso não é violência. Não é uma agressão corporal se dela não resulta uma ferida ou uma marca (8%). Já a violência sexual – forçar beijos em público, pressionar ou coagir para ter relações sexuais, por exemplo – é legitimada por um quarto dos 4 mil inquiridos num estudo da UMAR.
Quando lhes dizemos que controlar o Twitter da namorada ou exigir a pass do Facebook não é normal, olhares agitam- -se. Mas a esperança permanece: talvez tenhamos feito a diferença. Talvez tenhamos dito a coisa certa.
Amanhã é Dia da Mulher. Já sabemos que o número 8 desenhado no calendário de março não muda nada. Que acabe a impunidade, e já teremos feito alguma coisa. Mas só quando acabar o machismo, só nesse dia, entrarei numa escola sabendo que nenhuma daquelas miúdas virá a ser uma mulher espancada pelo homem em que se transformou algum daqueles miúdos.
Artigo publicado no jornal “I” a 7 de março de 2018
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