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Bruxelas manda despedir a bel-prazer

Desde 2008 houve mais de 400 mudanças nas leis laborais nos países da União Europeia. Mas quatro em cada cinco dos novos empregos são a tempo parcial ou a prazo.

É contra a natureza de Bruxelas calar-se quando deve, tal como lhe deve parecer contranatura aprender qualquer coisa com a realidade. A Comissão Europeia tem uma agenda própria, distante dos interesses dos povos, pela lei da austeridade. Até engoliu a geringonça, mas não abre mão do troikismo.

Em Portugal, a legislação laboral reentrou na ordem do dia pela procura de soluções para combater a estagnação salarial e o crescimento da precariedade. O debate foi introduzido por urgência social, porque a retoma económica tem de chegar à vida de quem trabalha, e pela evidência de que a qualidade do emprego alavanca o crescimento económico.

Isto é o contrário do que foi defendido pela ordem europeia desde a crise de 2008, quando a troika contribuiu ativamente para desregulamentar a legislação laboral por essa Europa fora. Partiam de dois princípios: o de que a desregulação do mercado de trabalho dinamiza a economia e o de que a precariedade combate o desemprego.

Dez anos depois, a destruição social da Europa mostrou-nos o contrário. Desde 2008 houve mais de 400 mudanças nas leis laborais nos países da União Europeia. Mas quatro em cada cinco dos novos empregos são a tempo parcial ou a prazo. A devastação do Estado social, entendido amplamente como modelo de proteção dos direitos sociais e económicos dos trabalhadores, rearrumou forças sociais e reestruturou as relações económicas. O empobrecimento forçado, mesmo que interrompido, terá consequências que ainda só podemos vislumbrar.

É por isso que Paulo Pena e Herald Schumann afirmaram, num artigo sobre a precariedade na Europa, que “pode não ser a causa principal, mas a precariedade tem um papel na Europa que se confronta com o populismo. E ganhou o primeiro plano nas ruas francesas, onde a lei laboral de Macron enfrenta a oposição de parte do eleitorado que o elegeu”.

As ligações estão aí, mas a Europa é teimosa. O impulso para se intrometer na vida dos países que tentam políticas contracíclicas é enorme, e por isso quis vir meter-se no debate sobre o combate à precariedade de Portugal. Bruxelas diz que está de acordo com a penalização da contratação a prazo, mas critica o facto de pouco ou nada estar a ser feito para reduzir o “excesso de proteção” dos trabalhadores que já estão nos quadros. Ou seja, quer que seja mais fácil despedir em Portugal.

Segundo a Comissão Europeia, “embora as recentes reformas do mercado de trabalho tenham melhorado os incentivos à criação de emprego, alguns aspetos do regime jurídico são ainda suscetíveis de desencorajar as empresas de contratar trabalhadores por tempo indeterminado”. O problema, veja-se só, fica a dever--se “à possibilidade de um trabalhador ser reintegrado na empresa se o despedimento for considerado abusivo” e aos “custos do despedimento individual de trabalhadores permanentes sem justa causa”.

O argumento é um completo embuste. Tenta sustentar que a única forma de aumentar o número de trabalhadores do “quadro” é dar-lhes a (ins) estabilidade de um contrato incerto, permitindo que sejam despedidos a qualquer momento. No fundo, o que a Europa quer é o mesmo que o PSD tentou fazer e não conseguiu: acabar com a justa causa. Mais uma vez, Bruxelas choca de frente com a Constituição da República Portuguesa e os direitos que aí estão instituídos.

Em Portugal, a desregulamentação da lei laboral só aumentou a precariedade e baixou salários. Desde esse momento, a tendência de crescimento dos contratos não permanentes não se alterou. Em 2017 foram comunicados ao Fundo de Compensação do Trabalho 861 438 contratos de trabalho, dos quais 80,6% eram temporários. Segundo o Livro Verde sobre as Relações Laborais, os não permanentes têm o dobro do risco de pobreza porque ganham 72% do salário dos trabalhadores permanentes.

Não chegam palavras e juras de amor aos direitos laborais. Sem mudar o Código de Trabalho, este quadro não vai alterar-se. É por isso que o governo, que até tem afirmado querer mais e melhor emprego, e em particular o presidente do Eurogrupo, devem reagir à provocação de Bruxelas. Que não os impeça o alinhamento europeu com o patronato português.

Artigo publicado no jornal “I” a 7 de fevereiro de 2017

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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