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Privatização da CP: Regresso a 1949, fragmentação e concorrência nos Transportes Públicos

O Governo anunciou, no âmbito do Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC), a privatização da CP aos bocados, para já, a privatização da EMEF (manutenção e montagem de material ferroviário), da CP Carga e de algumas linhas da CP. Depois do Ministro dos Transportes ter confessado em entrevista, que "admitia tudo a respeito da CP", o Governo revelou finalmente o seu programa de privatização escondido, com que se apresentou ao eleitorado, em Setembro de 2007.

Tal como o Bloco sempre sublinhou, o PS tinha uma parte do seu programa escondido e, ao contrário do que Sócrates sempre afirmou, esse programa referia-se ao um extenso programa de privatizações que, entre outros sectores, atinge em cheio os transportes.

Tanto quanto se sabe até agora, a privatização da CP segue a lógica neo-liberal de entregar ao sector privado as partes da empresa pública ferroviária que, em princípio, são os sectores mais lucrativos ou com mais potencial para tal. E as razões parecem bem simples.

A privatização da EMEF, permitirá aos futuros accionistas privados gerir, em rime de monopólio, assegurar a montagem, manutenção e assistência de todas as composições ferroviárias existentes no país, a começar pelo principal mercado que é a própria CP. O resultado imediato dessa operação é claro: a CP vai ter de aumentar os seus custos de manutenção dos comboios, e o que antes era internalizado nos custos operacionais, vai passar a ser custos com fornecimentos e serviços externos, ou seja, a factura vai aumentar: para a CP e para os passageiros.

Dizemos bem: CP e passageiros. Porque o esquema da privatização da CP, é abandonar o transporte de mercadorias ao sector privado, através da privatização da CP Carga, perspectivando-se a operação futura de dois operadores privados: a CP Carga (constituída em Junho de 2009) e a Takargo Rail (esta, do grupo Mota-Engil). Neste domínio, a estratégia parece ser a de favorecer o grupo Mota-Engil, já que, tendo obtido a concessão da Plataforma Logística do Poceirão, é fácil antever, com as opções estratégicas para o transporte de mercadorias que está a ser desenvolvido pelo Governo, o grupo Mota-Engil tem todas as condições para gerir em posição dominante o mercado do transporte ferroviário a nível nacional e internacional, com um benefício acrescido: é que, admitindo um crescimento significativo do transporte ferroviário nos próximos anos, apenas o grupo M-E estará em condições de potenciar todas as economias da operação e da logística do transporte de mercadorias, obter ganhos de economia de integração e, se for caso disso, transferir para terceiros os custos da sua operação, via preço dos serviços.

A CP vai reduzir-se, portanto, a um operador apenas de passageiros. Mas não de "todos os passageiros". Dos passageiros sim, mas dos mais "pobres", isto é, do serviço de passageiros das linhas que não são "atractivas para o negócio", ou seja, que não oferecem perspectivas de lucro aos futuros accionistas.

Na sequência de um processo de anos que levou à criação de várias empresas a partir da CP e à constituição de diversas "unidades de negócio", ou seja, centros de resultados segundo os vários tipos de linhas (em termos contabilísticos), foi possível identificar as diversas linhas mais lucrativas e, com isso, preparar a privatização. Em 2007, o serviço alfa pendular da Linha do Norte, era claramente o sector mais lucrativo do serviço de passageiros e a USGL (a Unidade de Suburbanos da Grande Lisboa) a que mais próximo se encontrava do equilíbrio de exploração.

Esta pequena história serve apenas para perceber as privatizações que estão em carteira: a linha do Norte e, presumivelmente, algumas linhas do serviço suburbano ferroviário de passageiros, nomeadamente, Linha de Sintra e Linha de Cascais. Neste último caso, não deve ser para já. Isto porque as especificações técnicas do serviço ferroviário na Linha de Cascais já estão obsoletas e, para tornar atractiva a sua privatização, serão necessários grandes investimentos na rede para permitir plena interoperabilidade com a restante rede (igual tensão de alimentação, sinalização, segurança, etc).

A ser assim, a consequência será trágica. No fundo, regressamos à lógica da concessão do serviço de transporte público por linha, isto é, concessionar o transporte público de passageiros por principais origens-destinos (tipo, Porto-Lisboa ou Braga-Lisboa, etc), que era a lógica da concessão de transportes aprovada em 1949 (RTA) na vigência do antigo regime de antes do 25 de Abril.

Nessa altura, a lógica das concessões do serviço de transporte era a lógica da linha, isto é, da carreira. Com isso, Salazar conseguiu construir uma importante base de apoio, favorecendo a constituição de alguns grandes grupos económicos, assente na exploração de serviços de transportes, em regime de monopólio regional. Agora, o esquema é o mesmo, mas aplica-se ao transporte ferroviário. A razão também é óbvia: a privatização do serviço público de transportes rodoviário já está, em grande medida, efectuada, faltando apenas algumas empresas nas áreas metropolitanas (Lisboa e Porto).

Para as pessoas, a consequência é trágica. A lógica da exploração e gestão dos sistemas de transportes, nomeadamente, ferroviários, em vez de seguirem uma lógica de sistema, de favorecer economias de escala e de integração na gestão das diversas linhas e de permitir aos passageiros deslocarem-se dentro da mesma empresa para os diversos destinos, passarão a estar obrigados a mudar de operador e a pagar mais pela mesma deslocação.

A experiência da privatização da British Rail (BR), em Inglaterra, diz-nos isso mesmo. Quanto no início dos anos oitenta, Margaret Thatcher decidiu desmembrar a BR numa constelação de empresas (mais de 25 operadores, espalhados por todo o país) mas todas privadas, o efeito foi imediato: os preços subiram e o serviço reduziu-se. Milhares de kms de rede foram pura e simplesmente encerrados com o argumento do prejuízo, e a frequência dos serviços perdeu qualidade, reduzindo-se ao mínimo. Claro que a integração do serviço de transportes numa mesma rede também desapareceu, e com ela, muito do transporte de passageiros passou a ser feito por via rodoviária (autocarros e automóveis privados).

Na altura, o discurso "oficial" dos governos, não contemplava a "prioridade ao transporte ferroviário", como modo de transporte mais amigo do ambiente. Nos dias de hoje, esse é o discurso "oficial". O que significa que, embora não se discuta a pertinência do impacte que a ferrovia pode ter no ambiente, tal não deve ser desligado do facto desses benefícios, em vez de poderem reverter para a sociedade no seu todo, virem a ser apropriado pelo sector privado.

No caso da CP, a privatização das linhas lucrativas vai ter um enorme impacto, especialmente ao nível da gestão e da exploração das restantes linhas (algum serviço inter-cidades, algumas linhas suburbanas, serviço regional). A lógica da gestão, em vez de ser a de ajudar ao desenvolvimento equilibrado dos territórios, passará a ser a do lucro (a direita não deixará cair o discurso dos chamados "custos do transporte" no Orçamento de Estado) e, daqui a uns anos, o discurso do "passado" do próprio governo do PS, de que "o serviço regional é muito importante", passará a ser simplesmente coisa do "passado".

A concessão de serviços de transporte seguindo uma lógica de rede e de promoção da intermodalidade e da integração dos sistemas de transportes, que a nova (já velhinha, agora) Lei de Bases do Transporte Terrestre de 1990 inaugurou na política de transportes e de mobilidade, estará assim também condenada. O Governo do PS argumenta que com as "Autoridades Metropolitanas de Transporte" vai ser possível gerir o sistema de transportes, numa lógica de rede, integrada. Mas quem pode acreditar que isso venha acontecer se, por exemplo, com a Fertagus, que iniciou a exploração do Eixo Ferroviário Norte-Sul em 1999, nunca foi "obrigada" a integrar-se no sistema de passes sociais multimodais - "passe social" por zonas -, em vigor na Área Metropolitana de Lisboa desde 1977?

Concorrência e "rentabilidade" entre operadores e modos de transporte vão passar a fazer parte do "discurso". Complementaridade, integração modal, preços acessíveis e multimodalidade, servirão apenas para compor o discurso oficial. Perderemos todos: as pessoas, os territórios e o ambiente.

Sobre o/a autor(a)

Economista de transportes
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Neste dossier:

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