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Desigualdade, a maldição do século

Donald Trump festejou a aprovação da sua reforma fiscal como se tivesse ganho uma guerra. Bem se compreende.

Satisfez os mais poderosos dos seus apoiantes, embolsou um ganho saboroso para a sua própria conta bancária e conseguiu pela primeira vez o apoio da maioria republicana numa matéria de grande impacto. Os efeitos desta reforma serão sentidos nos próximos anos e ainda a conta vai no adro. Mas adivinha-se o que vem: défice monumental, subida de taxa de juros e tensões no “terrorismo financeiro”, como um conselheiro presidencial de Clinton, Larry Summers, chamava ao equilíbrio entre os EUA e a China (que financia o défice norte-americano). Ora, se o que se passa na Casa Branca é ainda o que decide em grande medida a política mundial, esta política é uma das expressões da maldição do século – e vai agravá-la.

De facto, a extorsão fiscal é somente uma das formas de acumulação reforçada, e há outras não menos importantes, como a exploração do trabalho e a expropriação financeira, o uso das rendas sobre a dívida soberana ou mesmo toda a economia da dívida. Mas do que lhe quero falar hoje é do efeito desta maldição, a desigualdade, que é a base do poder excluinte e portanto da viciação da democracia.

Todos os anos, a Oxfam publica, ao mesmo tempo que começa o Fórum de Davos, que reúne a nata da política e da finança mundial, uma estimativa de quanto pesam as fortunas dos ultrabilionários, comparando-os com o total das posses da metade mais pobre do mundo. O relatório mais recente, que é de janeiro do ano que agora acaba, registou um salto nessa acumulação: as oito pessoas mais ricas acumulam agora uma fortuna total que equivale ao que tem a metade mais pobre da população mundial. Nos anos anteriores andava pelos oitenta e os autores do relatório escreviam que os afortunados cabiam num autocarro londrino; agora uma limusine de boas dimensões já pode transportar os beneficiados das fortunas que devastam o mundo.

Estes dados, no entanto, ainda podem pecar por defeito. A riqueza não é facilmente registável e outras formas de poder, que garantem benesses futuras, ficam fora destas folhas de contabilidade. Por isso, vale a pena aprofundar estes estudos com mais detalhe.

Foi o que fizeram alguns académicos que se têm destacado no estudo da desigualdade, Alvaredo, Piketty, Saez, Zucman e Chancel. O Relatório sobre a Desigualdade Mundial 2018, que acabam de publicar, apresenta um retrato assustador das tendências de fundo das últimas décadas. As suas conclusões são acabrunhantes: de 1980 a 2016, os 50% mais pobres do mundo beneficiaram de 12% do crescimento, ao passo que os 1% mais ricos conseguiram 27%. Quando se verifica a história de cada uma das principais economias, percebe-se de onde vem a força que Trump ganhou entre os milionários: se em 1980 a metade mais pobre detinha o dobro do que acumulavam os 1% mais ricos, em 1995 equilibravam-se (lembre-se do papel de Clinton) e em 2016 já os 1% têm o dobro do que juntam a metade de baixo. É uma inversão espectacular e o mesmo aconteceu noutros países: a Rússia ultrapassa os EUA em desigualdade e a China, que vem muito de trás, aproximou-se em grande velocidade e hoje há mais capital no Comité Central do PC Chinês do que no Congresso norte-americano.

Mas isto não se fica por aqui. Os autores do relatório calculam a trajetória futura possível no caso de se manterem as tendências atuais. No mundo inteiro, os 1% de cima quadruplicarão a posse da metade de baixo em 2050 se seguirem o padrão norte-americano; ficarão pelo triplo se mantiverem o seu próprio padrão. Se o que está já permite tal desigualdade e um poder arrogante dos que controlam as engrenagens do mundo, imagine o que será se se chegar ao padrão que este relatório nos anuncia. Uma maldição, então.

Artigo publicado no jornal “Público” em 27 de dezembro de 2017

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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