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Não é só uma questão de transparência…

A auto-preservação de uma IPSS significa manutenção de um problema. Manter um problema é o contrário de resolvê-lo.

Ou raríssimas ou frequentíssimas, é difícil olhar para o 3º sector com profundidade e clareza, pensando o Estado, o sector privado e o conceito de serviços em termos estratégicos e a longo prazo.

É mais fácil falar em corrupção, caridade e altruísmo social. Criticamos e punimos aqueles que utilizam a solidariedade social para fazer negócio em proveito próprio, criticamos ferozmente a ideologia salazarenta da caridadezinha da tia Jonet e desfazemo-nos em elogios e considerações àqueles que prestam serviços úteis à comunidade. Mas existem reflexões que importam não ignorar. Vamos tentar ser pragmáticos:

  •  As IPSS substituem o Estado em áreas e serviços aos quais o Estado não chega. E desse ponto de vista têm uma grande vantagem: estão mais próximas das comunidades e das pessoas, conhecem a realidade no terreno, possuem independência para atuar em conformidade com as necessidades mais prementes dos beneficiários desses serviços e, em algumas situações, até são mais progressistas do que a máquina burocrática do Estado e da Segurança Social.
  • A locação destes serviços neste sector é, factualmente, uma desresponsabilização do próprio Estado (ou transferência de responsabilidades, se preferirem). O que significa não só que o Estado não presta o serviço em si, como também não assume a responsabilidade sobre os trabalhadores dessas instituições – que de outra forma seriam funcionários do Estado e não trabalhadores do privado – não desenvolve as estruturas necessárias à prestação do serviço – que são propriedade privada - e abdica de interferir nas escolhas dos destinatários do serviço – seleccionados por estas IPSS por critério aleatório, seja por critério geográfico ou até outro de ética duvidosa. Exemplo: muitas delegações da Santa Casa da Misericórdia até há uns anos atrás recusavam-se a prestar serviços em regime de internamento a grávidas e idosos infectados com o VIH – o que seria impensável numa instituição gerida pelo Estado!
  • Depender dos subsídios do Estado significa… dependência. Empregos criados pelas IPSS, financiamento de projectos, pagamento de fornecedores e rendas tendem a perpetuar-se para se preservarem. Isto significa que em alguns casos, os serviços têm que ser prestados independentemente de haver ou não necessidade. Exemplo: o que aconteceria em Portugal se os processos de adopção se tornassem 4 vezes mais rápidos? Haveria menor necessidade de casas abrigo para órfãos, logo seriam necessários menos empregos e menos subsídios para estas instituições. E a tendência para a auto-preservação do emprego e do rendimento é universal.
  • A auto-preservação de uma IPSS significa manutenção de um problema. Manter um problema é o contrário de resolvê-lo. Exemplo: uma instituição que dá apoio a adolescentes grávidas desapareceria do mapa se conseguíssemos evitar por completo a gravidez na adolescência. É evidente que há problemas que não vão desaparecer mas este paradoxo cria um conflito lógico entre a IPSS que luta para ajudar a ultrapassar um problema e a mesma IPSS que tem um interesse inerente de sobrevivência em que o problema continue a existir.

Esta discussão é difícil, sobretudo porque deixa implícito um ataque ao empenho de tanta gente que todos os dias dedica a sua vida a ajudar os outros ou as outras. Mas ela é necessária. E também é necessário criar um novo paradigma temporal de IPSS: estas instituições só deveriam existir enquanto o Estado não fosse eficaz na resolução de um problema. Elas deveriam ser encaradas sempre como transitórias, predominantemente reivindicativas e confrontacionais, exigindo e ensinando ao Estado como prestar um serviço necessário ou como acabar com essa necessidade, resolvendo o problema na sua raiz.

Sobre o/a autor(a)

Médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
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